[yom kippur: a beleza de celebrar o perdão]

As comemorações do Yom Kippur – o feriado judaico que celebra o perdão e que, para mim, é um dos mais bonitos do mundo – começaram ontem, com o jejum de 25 horas, e se estendem pelo dia de hoje.

Muita gente que não entende a profundidade presente nos atos simbólicos dos judeus durante essa celebração ou não conhece sua origem, vê as proibições impostas pelo ritual – como não comer, não ter relações sexuais, não passar desodorantes, perfumes ou tomar banhos por prazer –  apenas como autoprovação, como martírio. Injustiça com a beleza implícita nesse ato de fé.

O objetivo de se proibir tais atos é exatamente afligir o corpo – voltando-se a atenção totalmente à alma. O povo judaico acredita que o ser humano é constituído pelo yetzer hatóv [desejo de fazer as coisas corretamente, a alma]  e o yetzer hará [desejo de seguir os próprios instintos, o corpo]. Nosso desafio na vida é sincronizar o segundo com o primeiro. O Talmud faz uma analogia sobre isso entre cavalo [corpo] e cavaleiro [alma]: “É sempre melhor o cavaleiro estar em cima do cavalo”.

Na verdade, o Yom Kippur é o fechamento de um processo longo, pois é sensato pensar que não é possível se arrepender realmente em pouco mais de um dia. As pessoas cometem muitos erros [voluntários ou não] em um ano e para que se “retorne ao bem” – tradução literal da teshuvá, nome do processo de arrependimento – se reserva todo o último mês do ano judeu, o Elul, segundo a tradição.

É durante o Elul que as pessoas se preparam para a reflexão profunda que leva até o caminho interior, da alma. Para lembrar a todos, pela manhã logo cedo, o shofar [instrumento de sopro considerado sagrado pelos judeus] chama o povo para esse despertar. E, acordar, aqui, tem um significado muito maior do que sair da cama para iniciar o dia. O toque do shofar é um mandamento da Torá – o livro sagrado – e como preceito da fé judaica deve ser precedido de uma bênção especial, em agradecimento a D’us. É um preparo, um chamado, para que os atos não sejam realizados apenas pela força do hábito, mas de forma consciente, conhecendo seu significado e a quem se responderá por eles.

Uma semana antes de Rosh Hashaná – o ano novo judeu – também na madrugada se iniciam orações, chamadas selichot [perdões]. O dia 1 de Tishrei é a grande data – a base para um novo ano de vida – que é seguido de outros nove dias – até o Yom Kippur. Dez dias para seguir em direção a sua alma, ao seu mais profundo eu, afastando o mal e caminhando para o bem.

Kippur, na raiz da língua hebraica, se refere ao “que cobre”, o castigo que envolve o ato perverso ou incorreto. É impossível apagar aquilo que já aconteceu, assim a única maneira de superá-lo é a modificação da conduta pessoal depois que ele já aconteceu. “Deus pode apagar o castigo, não o ato”. Traduzindo, o que se fez, continua com você e as consequências sob sua responsabilidade.

O interessante é que as más ações têm, efetivamente, duas categorias: do homem em relação ao próprio homem e do homem em relação a Deus. A primeira traz a vida diária, do cotidiano, em que os seres humanos se relacionam e acabam por cometer erros decorrentes desse relacionamento – e devem ser os próprios homens a resolvê-los. Diz-se: “As transgressões que vão de homem a homem não são expiadas pelo Yom Kippur, se antes não forem perdoadas pelo próximo.”  Assim, deve-se pedir o perdão do semelhante, pois se não for dado, nem mesmo Deus poderá intervir. Já a segunda categoria é o segredo da consciência – o relacionamento direto com a alma e, consequentemente, com Deus.

Muitos devem estar se perguntando o que eu, que não sou judia, estou fazendo ao escrever um post tão detalhado sobre o Yom Kippur. E para todos eu respondo que não é a religião em si que me chama a atenção aqui, mas o significado de cada pequeno ato envolvido, sua beleza pura e intrínseca.

É difícil entender o que acontece dentro ou perto das fronteiras onde nasceu o povo judeu. Eu mesma, sendo sincera, muitas vezes me sinto indignada pelo banho de sangue que se vê nas telas dos noticiários. Mas é preciso parar e se distanciar para ver a verdade. Estamos a quilômetros de distância. Vivemos em uma cultura completamente diferente que nos impede de interpretar os acontecimentos à luz do conhecimento da origem [tão ancestral] dos conflitos que por ali devastam vidas.

A minha torcida, neste dia tão especial e sagrado, é que o perdão aconteça cada dia menos. Não por falta de perdoarmos os erros, mas pela falta dessas transgressões que necessitam ser esquecidas.

Que o homem tente trazer realmente esse despertar, essa atenção para o que faz ou diz [a língua é a mais afiada das facas], para o agora. Que se pare e pense antes. Que se procure pela paciência e, ao encontrá-la, se pratique cada dia mais e mais. Assim poderemos passar a celebrar o Yom Kippur apenas por sua beleza etérea e seu simbolismo puro. A energia de se “estar no bem” e a ele nunca mais precisar retornar – pois ele será o agora.

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