PARTE V - A Bacia de Prata, O Demônio da Vila Elfica e o Desmundo
ELE ACENDEU E LEVANTOU A LAMPARINA NOVAMENTE. Havia muitas trilhas laterais, chamadas de sendas, que partiam de ambos os lados do caminho principal. Logo à frente, presa a uma pequena bétula, havia uma placa de madeira que marcava uma destas sendas. Estava rabiscada em tinta preta: Kalla bhajat niboot scree. Malvin conhecia as palavras. "Olá" ou "Tchau" da forma mais respeitosa possível na língua dos dragões. Napólitus e Khallifja eram homens fluentes nessa nobre língua inútil. Eram lenhadores que foram jantar na cabana de Grande Mordon em várias ocasiões, e muitas vezes a família comerá na casa de um dos dois. - Eles são boa gente, mas não entram nas profundezas - contou Grande Mordon ao filho depois de um desses jantares. - Há muito pau-ferro bom perto das balsas, mas o verdadeiro tesouro, a madeira mais densa e pura, está nas profundezas, perto de onde a trilha acaba no limite de Prontera. Então talvez Malvin realmente só tivera andado uma roda ou duas, mas a escuridão altera tudo. Ele virou a mula Bitsy para a senda de Kalla bhajat niboot scree e, menos de um minuto depois, entrou na clareira onde o Cobrador estava sentado diante de uma alegre fogueira. - Ora, cá está o jovem Malvin - comentou o homem - Você tem culhões, mesmo que eles ainda não tenham cabelos. Venha, sente-se, coma um pouco do guisado. Malvin não sabia muito bem se queria compartilhar do que esse estranho sujeito chamava de jantar, mas o menino não havia comido nada, e o aroma que escapava do caldeirão pendurado sobre o fogo era apetitoso. Ao ler os pensamentos do jovem visitante com uma precisão perturbadora, o Cobrador do baronato falou. - Eu não vou te envenenar, jovem Malvin. - Eu sei que não - disse Malvin... mas agora que o veneno foi mencionado, ele não sabia mais nada. Mesmo assim, o menino deixou que o Cobrador servisse uma bela concha em um prato de lata, e aceitou a colher de lata que lhe foi oferecida, estava amassada, porém limpa. Não havia nada de mágico a respeito da refeição; o guisado era de bife, batata, cenoura e cebolas que nadavam em um molho saboroso. Enquanto comia de cócaras, Malvin viu a mula Bitsy se aproximar do cavalo negro do anfitrião. O garanhão tocou brevemente o focinho da humilde mula, depois virou a cara (de uma maneira um tanto quanto desdenhosa, pensou Malvin) para a aveia que o Cobrador tinha espalhado no chão, que tinha sido cuidadosamente limpo de lascas de madeira - os resquícios dos irmãos Napólitus e Khallifja. O Cobrador não puxou conversa enquanto Malvin comia, apenas chutou o chão regularmente com o salto da bota e abriu um pequeno buraco. Ao lado estava a bacia que fora amarrada acima do chão. Era difícil para Malvin acreditar que a mãe estava certa a respeito daquilo - uma bacia feita de prata valeria uma fortuna -, mas o objeto certamente parecia ser de prata. Quantas moedas teriam que ser derretidas e fundidas para fazer uma coisa dessas? O salto da bota do Cobrador encontrou uma raiz. Debaixo da capa, ele tirou uma faca que era quase tão comprida quanto o antebraço de Malvin e cortou a raiz com um golpe. Então ele voltou a usar o salto: tuc e tuc e tuc. - Por que cê tá cavando? - perguntou Malvin. O Cobrador ergueu os olhos por tempo suficiente para dar um sorriso ao menino. - Talvez você descubra. Talvez não. Acho que descobrirá. Já terminou a refeição? - Sim, e agradeço. - Malvin bateu na garganta três vezes como a mãe havia lhe ensinado. - Estava ótima. - Que bom. Beijos não duram, o que você cozinha, sim. Assim dizia o povo do caldeirão. Vejo que admira minha bacia. É linda não é? É uma relíquia dos Elfos da Noite que já se foram. Na vila Elfica existiram dragões de verdade, e há fogaréus deles ainda nas profundezas da Floresta Antiga, tenho certeza. Um monte de lobos é uma alcateia; um monte de corvos é um bando; um monte de dragões; é um fogaréu. - Um fogaréu de dragões - falou Malvin saboreando as palavras. Então ele foi acometido pelo sentido real do que o Cobrador falou. - Se os dragões da Floresta Antiga estão nas profundezas... Mas o Cobrador o interrompeu antes que Malvin concluísse o pensamento. - Nananina-NÃO! Poupe tuas imaginações. Por enquanto, leve a bacia e pegue água para mim. Tem água no limite da clareira. É melhor levar sua pequena lamparina, pois K brilho da fogueira não chega tão longe, e há um ghoul ferido adormecido em uma das árvores. Ele está bem inchado o que significa que comeu há pouco tempo, mas eu ainda sim não pegaria água embaixo dele. - O Cobrador deu outro sorriso. Malvin considerou um sorriso cruel, mas isto não era surpresa. - Por outro lado, um menino corajoso o suficiente para entrar na Floresta Antiga com apenas uma das mulas do pai como companhia pode fazer o que bem quiser. A bacia era de prata; era pesada demais para ser de qualquer outro material. Malvin a levou debaixo do braço, de maneira desajeitada. Não mal livre estava a lamparina. Ao se aproximar do fim da clareira, o menino começou a sentir o cheiro de algo repulsivo e desagradável e ouviu um som baixo de estalos, como se fossem muitas boquinhas. Ele parou. - Você não vai querer está água, senpai, está podre. - Não me diga o que eu vou ou não querer, jovem Malvin, apenas encha a bacia. E não deixa de doce de olho no ghoul, eu lhe rogo. O menino se ajoelhou pesadamente na grama úmida e nojenta como a de um pântano, pousou a bacia diante de si e olhou para o pequeno córrego moroso. A água estava repleta de bichos brancos e gordos. As cabeças exageradas eram negras, os olhos estavam em hastes. Eles pareciam larvas aquáticas e davam a impressão de estar em guerra. Após um instante em observação, Malvin percebeu que os bichos estavam devorando uns aos outros. O guisado se revirou em seu estômago. Sentiu a bike queimar seu esôfago mas conseguiu impedir que vomitasse ali. Acima do menino veio o som como o de uma mão escorregando por um longo pedaço de lixa. Ele ergueu a lamparina. No galho mais baixo de um pau-ferro à esquerda, uma enorme cobra azulada estava pendurada e enrolada. A cabeça em forma de pá, maior do que a panela de cozinha da mãe de Malvin, apontava para ele. Olhos da cor de âmbar com pupilas verticais negras o encaravam com sono. Uma língua fina e forqueada apareceu, dançou e voltou para dentro com o som líquido de sluuuuurp. Malvin encheu a bacia com água fedida o mais rápido possível, porém, como a maior parte da atenção estava concentrada na criatura que olhava para ele lá de cima, vários bichos foram parar na mão dele, onde imediatamente começaram a morder. O menino se afastou com um gritinho de dor e nojo, depois carregou a bacia de volta para a fogueira. Ele se deslocou devagar e com cuidado, determinado a não derramar uma gota em si mesmo, porque a água podre se agitava com seres vivos. - Se isto é pra beber ou lavar... O Cobrador olhou para Malvin com a barca inclinada para o lado, à espera de que ele terminasse, mas o menino não conseguiu. Ele apenas pousou a bacia ao lado do homem, que parecia ter parado de cavar o buraco inútil. - Não é para beber, nem para lavar, embora nós pudéssemos fazer ambas as coisas, se quiséssemos. - Você está brincando senpai! É uma água podre! - É um mundo podre, jovem Malvin, mas nós desenvolvemos resistências não é mesmo? Respiramos o ar, comemos a comida, fazemos o que o mundo nos pede. Sim. Sim, fazemos. Deixe para lá. Abaixe-se. O Cobrador apontou para um ponto, depois remexeu em sua bolsa de viagem. Malvin observou os bichos se devorarem, enojado, porém fascinado. Será que continuariam até que apenas um - o mais forte - sobrasse? - Ah, cá está! - O anfitrião de Malvin retirou um bastão de aço com uma ponta branca que parecia de marfim e ficou de cócoras, de forma que os dois se encarassem sobre o conteúdo agitado da bacia. Malvin olhou fixamente para o bastão de aço na mão enluvada. - Isto é uma varinha? O Cobrador pareceu refletir. - Creio que sim. Embora ela tenha começado a vida como a alavanca de câmbio de um Dodge Dart. O carro mais popular dos Estados Unidos, jovem Malvin. - O que são os Estados Unidos? - Um reino repleto de idiotas que adoram brinquedos. Isso não tem importância pra nossa palestra. Mas saiba, e conte para seus filhos, caso tenha a infelicidade de ter algum, que, nas mãos certas, qualquer objeto pode ser mágico. Agora, observe! O Cobrador jogou a capa para trás, a fim de libertar o braço completamente, e passou a varinha sobre a bacia de água turva e infestada. Diante dos olhos arregalados de Malvin, os bichos ficaram parados...flutuaram na superfície...desapareceram. O Cobrador passou a varinha pela segunda vez e a sujeira também desapareceu. A água realmente parecia potável agora. Nela, Malvin se viu olhando para o próprio rosto surpreso. - Pela Ordem dos Arcanos! Como foi que você... - Silêncio, menino estupido! Se perturbares a água sequer um pouquinho, não verás nada! O Cobrador passou a varinha improvisada sobre a bacia pela terceira vez, e o reflexo de Malvin desapareceu da mesma forma que os vermes e a sujeira. Em seu lugar, a imagem turva de nuvens douradas tomaram forma. O céu era roxo claro e fosco como se fosse um pano. Havia uma cachoeira, mas não havia água. Uma vela gigantesca pairava acima de tudo aquilo, o que caia pelos rochedos era cera ao invés de água. O cheiro de Jasmin abraçou os sentidos de Malvin. Era como se a imensidão daquela lugar tivesse envolvido o garoto e ele estivesse bem ali, onipresente, mas ali. Ele ouviu o som de uma harpa tocar, e seguiu com o rosto até uma garota. Ruiva. Sardenta. Usava um vestido branco e tocava o que não era exatamente uma harpa. Diante dela, havia um alce, e seus chifres sustentavam as cordas do instrumento como se pertencessem a criatura. Nem a criatura nem a garota olhavam para Malvin, estavam serenos, completamente imersos naquele paraíso. Ao lado da cachoeira perfumosa, havia um teclado, exatamente como o de um piano. As teclas brancas e pretas, porém não havia o corpo do piano. Em cima do instrumento, havia um aquário. A água estava suja e seus peixes estavam mortos. Flutuantes. Um garoto de pijama listrado surgiu entre as árvores laterais da cachoeira, e ele se sentou na frente do piano em um toco de madeira. O menino também parecia alienado de onde estava, mas pelo menos ele parecia mais real do que a garota que tocava nos chifres do alce. Os dedos do garoto começaram a dançar suavemente pelas teclas, o aquário ganhou vida no mesmo momento. A água ganhou brilho, os peixes ressuscitaram e até saltavam de alegria de dentro do aquário. A água era azul esverdeada e iluminavam o rosto do garoto que não esboçava nem sequer um simples sorriso, mesmo diante de toda a magia que efetuava. - Isso é incrível! - Gritou Malvin, e toda a magia de foi. Ele acordou como de um sonho. A água da bacia foi perturbada. O mundo sombrio e podre em que vivia, estava ali. O Cobrador olhava pra ele como se esperasse uma resposta, mas Malvin ficou sério e perguntou para o anfitrião. - Qual o seu nome, Cobrador do Baronato. Ele sorriu, como se estivesse esperando pela pergunta. Os dentes brancos, mas o hálito ainda era de arrasar. - O meu nome não é o mesmo que o seu. - Ele puxou o ar. - O seu nome é você quem dá. Já o meu, é BlackBird. Ao dizer o próprio nome, sua capa se transfigurou até virar um agrupamento de três pares perfeitos de asas negras. Penas negras como a de um corvo. Como a de um Pássaro negro. Malvin arregalou os olhos. - O senhor é mesmo um demônio! Como minha mãe disse. - Não garoto, os filhos e filhas de Adão e Eva me enxergam assim, mas saiba de uma coisa. Você e eu somos muito mais do que demônios ou anjos. - Por que eu? - Não tenho a resposta para isso, Jovem. Você tem que criar o seu nome como eu criei o meu, e somente então vai entender. Malvin tentou se concentrar e pensar no que perguntaria primeiro e como formular todas aquelas perguntas que se aglomeravam em sua mente mas simplesmente não conseguia verbaliza-las. Quando percebeu já estava gaguejando, atropelando as próprias coisas que tentava dizer. - Garoto! O que raios está fazendo? Está me assustando! - Riu BlackBird - Quer saber, todos têm a mesma reação. - Todos? O rosto do Cobrador de impostos ficou sério novamente. - Malvin, você é um herdeiro. Você possui poderes que mal consegue imaginar. Há mais seres como você. Como nós. Eu sou responsabilizado por buscar por eles. São sempre crianças, já estou acostumado. - Quantos já foram? - Contando com você, somos quatro. Malvin sequer entendeu tudo, mas o Cobrador de Impostos do Baronato falou e falou durante horas. O mundo que Malvin tinha visto na bacia, chamava-se Desmundo, também conhecido como Mundo dos Sonhos. É pra lá que toda alma vai enquanto o corpo dorme e o que as pessoas sonham, é exatamente o que estão vivendo por lá. Uma terra em que Malvin teria domínio. Teria controle, e sua função era tomar conta dos sonhos das pessoas. Como BlackBird dissera, o mundo é podre, e embora possamos nos adaptar, comer e beber o que a vida nos fornece, os nossos sonhos estarão sempre lá para vivermos as aventuras que nosso subconsciente planta. "Ervilhaca", disse o menino Malvin, antes de adormecer ao lado de sua mula naquela noite. Era o nome da árvore em que adormeceu encostado. "Deixe-os voar" - Ervilhaca