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As Aventuras de Malvin

@as-aventuras-de-malvin / as-aventuras-de-malvin.tumblr.com

Olá!!! Estou estranhamente empolgado! Espero que gostem dessa nova mini série de capítulos que estou publicando. Serão aproximadamente cinco capítulos! Aproveitem a história e sincronizem ela com a atual situação em VIDA.
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PARTE V - A Bacia de Prata, O Demônio da Vila Elfica e o Desmundo

ELE ACENDEU E LEVANTOU A LAMPARINA NOVAMENTE. Havia muitas trilhas laterais, chamadas de sendas, que partiam de ambos os lados do caminho principal. Logo à frente, presa a uma pequena bétula, havia uma placa de madeira que marcava uma destas sendas. Estava rabiscada em tinta preta: Kalla bhajat niboot scree. Malvin conhecia as palavras. "Olá" ou "Tchau" da forma mais respeitosa possível na língua dos dragões. Napólitus e Khallifja eram homens fluentes nessa nobre língua inútil. Eram lenhadores que foram jantar na cabana de Grande Mordon em várias ocasiões, e muitas vezes a família comerá na casa de um dos dois. - Eles são boa gente, mas não entram nas profundezas - contou Grande Mordon ao filho depois de um desses jantares. - Há muito pau-ferro bom perto das balsas, mas o verdadeiro tesouro, a madeira mais densa e pura, está nas profundezas, perto de onde a trilha acaba no limite de Prontera. Então talvez Malvin realmente só tivera andado uma roda ou duas, mas a escuridão altera tudo. Ele virou a mula Bitsy para a senda de Kalla bhajat niboot scree e, menos de um minuto depois, entrou na clareira onde o Cobrador estava sentado diante de uma alegre fogueira. - Ora, cá está o jovem Malvin - comentou o homem - Você tem culhões, mesmo que eles ainda não tenham cabelos. Venha, sente-se, coma um pouco do guisado. Malvin não sabia muito bem se queria compartilhar do que esse estranho sujeito chamava de jantar, mas o menino não havia comido nada, e o aroma que escapava do caldeirão pendurado sobre o fogo era apetitoso. Ao ler os pensamentos do jovem visitante com uma precisão perturbadora, o Cobrador do baronato falou. - Eu não vou te envenenar, jovem Malvin. - Eu sei que não - disse Malvin... mas agora que o veneno foi mencionado, ele não sabia mais nada. Mesmo assim, o menino deixou que o Cobrador servisse uma bela concha em um prato de lata, e aceitou a colher de lata que lhe foi oferecida, estava amassada, porém limpa. Não havia nada de mágico a respeito da refeição; o guisado era de bife, batata, cenoura e cebolas que nadavam em um molho saboroso. Enquanto comia de cócaras, Malvin viu a mula Bitsy se aproximar do cavalo negro do anfitrião. O garanhão tocou brevemente o focinho da humilde mula, depois virou a cara (de uma maneira um tanto quanto desdenhosa, pensou Malvin) para a aveia que o Cobrador tinha espalhado no chão, que tinha sido cuidadosamente limpo de lascas de madeira - os resquícios dos irmãos Napólitus e Khallifja. O Cobrador não puxou conversa enquanto Malvin comia, apenas chutou o chão regularmente com o salto da bota e abriu um pequeno buraco. Ao lado estava a bacia que fora amarrada acima do chão. Era difícil para Malvin acreditar que a mãe estava certa a respeito daquilo - uma bacia feita de prata valeria uma fortuna -, mas o objeto certamente parecia ser de prata. Quantas moedas teriam que ser derretidas e fundidas para fazer uma coisa dessas? O salto da bota do Cobrador encontrou uma raiz. Debaixo da capa, ele tirou uma faca que era quase tão comprida quanto o antebraço de Malvin e cortou a raiz com um golpe. Então ele voltou a usar o salto: tuc e tuc e tuc. - Por que cê tá cavando? - perguntou Malvin. O Cobrador ergueu os olhos por tempo suficiente para dar um sorriso ao menino. - Talvez você descubra. Talvez não. Acho que descobrirá. Já terminou a refeição? - Sim, e agradeço. - Malvin bateu na garganta três vezes como a mãe havia lhe ensinado. - Estava ótima. - Que bom. Beijos não duram, o que você cozinha, sim. Assim dizia o povo do caldeirão. Vejo que admira minha bacia. É linda não é? É uma relíquia dos Elfos da Noite que já se foram. Na vila Elfica existiram dragões de verdade, e há fogaréus deles ainda nas profundezas da Floresta Antiga, tenho certeza. Um monte de lobos é uma alcateia; um monte de corvos é um bando; um monte de dragões; é um fogaréu. - Um fogaréu de dragões - falou Malvin saboreando as palavras. Então ele foi acometido pelo sentido real do que o Cobrador falou. - Se os dragões da Floresta Antiga estão nas profundezas... Mas o Cobrador o interrompeu antes que Malvin concluísse o pensamento. - Nananina-NÃO! Poupe tuas imaginações. Por enquanto, leve a bacia e pegue água para mim. Tem água no limite da clareira. É melhor levar sua pequena lamparina, pois K brilho da fogueira não chega tão longe, e há um ghoul ferido adormecido em uma das árvores. Ele está bem inchado o que significa que comeu há pouco tempo, mas eu ainda sim não pegaria água embaixo dele. - O Cobrador deu outro sorriso. Malvin considerou um sorriso cruel, mas isto não era surpresa. - Por outro lado, um menino corajoso o suficiente para entrar na Floresta Antiga com apenas uma das mulas do pai como companhia pode fazer o que bem quiser. A bacia era de prata; era pesada demais para ser de qualquer outro material. Malvin a levou debaixo do braço, de maneira desajeitada. Não mal livre estava a lamparina. Ao se aproximar do fim da clareira, o menino começou a sentir o cheiro de algo repulsivo e desagradável e ouviu um som baixo de estalos, como se fossem muitas boquinhas. Ele parou. - Você não vai querer está água, senpai, está podre. - Não me diga o que eu vou ou não querer, jovem Malvin, apenas encha a bacia. E não deixa de doce de olho no ghoul, eu lhe rogo. O menino se ajoelhou pesadamente na grama úmida e nojenta como a de um pântano, pousou a bacia diante de si e olhou para o pequeno córrego moroso. A água estava repleta de bichos brancos e gordos. As cabeças exageradas eram negras, os olhos estavam em hastes. Eles pareciam larvas aquáticas e davam a impressão de estar em guerra. Após um instante em observação, Malvin percebeu que os bichos estavam devorando uns aos outros. O guisado se revirou em seu estômago. Sentiu a bike queimar seu esôfago mas conseguiu impedir que vomitasse ali. Acima do menino veio o som como o de uma mão escorregando por um longo pedaço de lixa. Ele ergueu a lamparina. No galho mais baixo de um pau-ferro à esquerda, uma enorme cobra azulada estava pendurada e enrolada. A cabeça em forma de pá, maior do que a panela de cozinha da mãe de Malvin, apontava para ele. Olhos da cor de âmbar com pupilas verticais negras o encaravam com sono. Uma língua fina e forqueada apareceu, dançou e voltou para dentro com o som líquido de sluuuuurp. Malvin encheu a bacia com água fedida o mais rápido possível, porém, como a maior parte da atenção estava concentrada na criatura que olhava para ele lá de cima, vários bichos foram parar na mão dele, onde imediatamente começaram a morder. O menino se afastou com um gritinho de dor e nojo, depois carregou a bacia de volta para a fogueira. Ele se deslocou devagar e com cuidado, determinado a não derramar uma gota em si mesmo, porque a água podre se agitava com seres vivos. - Se isto é pra beber ou lavar... O Cobrador olhou para Malvin com a barca inclinada para o lado, à espera de que ele terminasse, mas o menino não conseguiu. Ele apenas pousou a bacia ao lado do homem, que parecia ter parado de cavar o buraco inútil. - Não é para beber, nem para lavar, embora nós pudéssemos fazer ambas as coisas, se quiséssemos. - Você está brincando senpai! É uma água podre! - É um mundo podre, jovem Malvin, mas nós desenvolvemos resistências não é mesmo? Respiramos o ar, comemos a comida, fazemos o que o mundo nos pede. Sim. Sim, fazemos. Deixe para lá. Abaixe-se. O Cobrador apontou para um ponto, depois remexeu em sua bolsa de viagem. Malvin observou os bichos se devorarem, enojado, porém fascinado. Será que continuariam até que apenas um - o mais forte - sobrasse? - Ah, cá está! - O anfitrião de Malvin retirou um bastão de aço com uma ponta branca que parecia de marfim e ficou de cócoras, de forma que os dois se encarassem sobre o conteúdo agitado da bacia. Malvin olhou fixamente para o bastão de aço na mão enluvada. - Isto é uma varinha? O Cobrador pareceu refletir. - Creio que sim. Embora ela tenha começado a vida como a alavanca de câmbio de um Dodge Dart. O carro mais popular dos Estados Unidos, jovem Malvin. - O que são os Estados Unidos? - Um reino repleto de idiotas que adoram brinquedos. Isso não tem importância pra nossa palestra. Mas saiba, e conte para seus filhos, caso tenha a infelicidade de ter algum, que, nas mãos certas, qualquer objeto pode ser mágico. Agora, observe! O Cobrador jogou a capa para trás, a fim de libertar o braço completamente, e passou a varinha sobre a bacia de água turva e infestada. Diante dos olhos arregalados de Malvin, os bichos ficaram parados...flutuaram na superfície...desapareceram. O Cobrador passou a varinha pela segunda vez e a sujeira também desapareceu. A água realmente parecia potável agora. Nela, Malvin se viu olhando para o próprio rosto surpreso. - Pela Ordem dos Arcanos! Como foi que você... - Silêncio, menino estupido! Se perturbares a água sequer um pouquinho, não verás nada! O Cobrador passou a varinha improvisada sobre a bacia pela terceira vez, e o reflexo de Malvin desapareceu da mesma forma que os vermes e a sujeira. Em seu lugar, a imagem turva de nuvens douradas tomaram forma. O céu era roxo claro e fosco como se fosse um pano. Havia uma cachoeira, mas não havia água. Uma vela gigantesca pairava acima de tudo aquilo, o que caia pelos rochedos era cera ao invés de água. O cheiro de Jasmin abraçou os sentidos de Malvin. Era como se a imensidão daquela lugar tivesse envolvido o garoto e ele estivesse bem ali, onipresente, mas ali. Ele ouviu o som de uma harpa tocar, e seguiu com o rosto até uma garota. Ruiva. Sardenta. Usava um vestido branco e tocava o que não era exatamente uma harpa. Diante dela, havia um alce, e seus chifres sustentavam as cordas do instrumento como se pertencessem a criatura. Nem a criatura nem a garota olhavam para Malvin, estavam serenos, completamente imersos naquele paraíso. Ao lado da cachoeira perfumosa, havia um teclado, exatamente como o de um piano. As teclas brancas e pretas, porém não havia o corpo do piano. Em cima do instrumento, havia um aquário. A água estava suja e seus peixes estavam mortos. Flutuantes. Um garoto de pijama listrado surgiu entre as árvores laterais da cachoeira, e ele se sentou na frente do piano em um toco de madeira. O menino também parecia alienado de onde estava, mas pelo menos ele parecia mais real do que a garota que tocava nos chifres do alce. Os dedos do garoto começaram a dançar suavemente pelas teclas, o aquário ganhou vida no mesmo momento. A água ganhou brilho, os peixes ressuscitaram e até saltavam de alegria de dentro do aquário. A água era azul esverdeada e iluminavam o rosto do garoto que não esboçava nem sequer um simples sorriso, mesmo diante de toda a magia que efetuava. - Isso é incrível! - Gritou Malvin, e toda a magia de foi. Ele acordou como de um sonho. A água da bacia foi perturbada. O mundo sombrio e podre em que vivia, estava ali. O Cobrador olhava pra ele como se esperasse uma resposta, mas Malvin ficou sério e perguntou para o anfitrião. - Qual o seu nome, Cobrador do Baronato. Ele sorriu, como se estivesse esperando pela pergunta. Os dentes brancos, mas o hálito ainda era de arrasar. - O meu nome não é o mesmo que o seu. - Ele puxou o ar. - O seu nome é você quem dá. Já o meu, é BlackBird. Ao dizer o próprio nome, sua capa se transfigurou até virar um agrupamento de três pares perfeitos de asas negras. Penas negras como a de um corvo. Como a de um Pássaro negro. Malvin arregalou os olhos. - O senhor é mesmo um demônio! Como minha mãe disse. - Não garoto, os filhos e filhas de Adão e Eva me enxergam assim, mas saiba de uma coisa. Você e eu somos muito mais do que demônios ou anjos. - Por que eu? - Não tenho a resposta para isso, Jovem. Você tem que criar o seu nome como eu criei o meu, e somente então vai entender. Malvin tentou se concentrar e pensar no que perguntaria primeiro e como formular todas aquelas perguntas que se aglomeravam em sua mente mas simplesmente não conseguia verbaliza-las. Quando percebeu já estava gaguejando, atropelando as próprias coisas que tentava dizer. - Garoto! O que raios está fazendo? Está me assustando! - Riu BlackBird - Quer saber, todos têm a mesma reação. - Todos? O rosto do Cobrador de impostos ficou sério novamente. - Malvin, você é um herdeiro. Você possui poderes que mal consegue imaginar. Há mais seres como você. Como nós. Eu sou responsabilizado por buscar por eles. São sempre crianças, já estou acostumado. - Quantos já foram? - Contando com você, somos quatro. Malvin sequer entendeu tudo, mas o Cobrador de Impostos do Baronato falou e falou durante horas. O mundo que Malvin tinha visto na bacia, chamava-se Desmundo, também conhecido como Mundo dos Sonhos. É pra lá que toda alma vai enquanto o corpo dorme e o que as pessoas sonham, é exatamente o que estão vivendo por lá. Uma terra em que Malvin teria domínio. Teria controle, e sua função era tomar conta dos sonhos das pessoas. Como BlackBird dissera, o mundo é podre, e embora possamos nos adaptar, comer e beber o que a vida nos fornece, os nossos sonhos estarão sempre lá para vivermos as aventuras que nosso subconsciente planta. "Ervilhaca", disse o menino Malvin, antes de adormecer ao lado de sua mula naquela noite. Era o nome da árvore em que adormeceu encostado. "Deixe-os voar" - Ervilhaca

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AS AVENTURAS DE MALVIN (CAPÍTULO IV) – O BAÚ

Haviam camisas e calças em cima, enfiadas de qualquer maneira, a maioria rasgadas. Malvin pensou (com um rancor amargo que era completamente novo para ele): É a mamãe que vai lavá-las, remenda-las, e dobra-las com capricho quando Grande Braw mandar. E será que ele vai agradecer com um tapa no braço ou um soco no pescoço ou no rosto?

 Ele retirou as roupas e descobriu, embaixo delas, o que tornava o baú pesado. O pai de Braw fora carpinteira, e aqui estavam as ferramentas. Malvin não precisava de um adulto para dizer que elas eram valiosas, pois eram feitas de metal de verdade. Grande Braw podia ter vendido as ferramentas para pagar o imposto, ele nunca usa e nem sequer sabe usar, eu garanto. Podia ter vendido para alguém que usasse, como Haggerty, o Prego, por exemplo, e podia ter pagado o imposto com uma boa quantia de sobra.

 Havia uma palavra para aquele tipo de comportamento e, graças aos ensinamentos da viúva Melina, Malvin sabia qual era. A palavra era avarento.

 Ele tentou tirar a caixa de ferramentas, e a princípio não conseguiu. Era muito pesada para o menino. Malvin pousou os martelos, as chaves de fenda e a barra de amolar ao lado das roupas. Aí conseguiu. Embaixo havia cinco cabeças de machado que teriam feito seu pai bater na testa com espanto e indignação. O aço precioso estava salpicado por ferrugem, e Malvin não precisou testar com o polegar para ver que as lâminas estavam cegas. O novo marido de Ema ocasionalmente afiava o machado atual, mas não se importava com essas cabeças sobressalentes havia muito tempo. Quando precisasse delas, provavelmente estariam inúteis.

 Enfiados em um canto do baú estavam uma bolsinha de pele de garça e um objeto envolto em camurça de qualidade. Malvin pegou este último, desembrulhou e viu a imagem de uma mulher com um rosto sorridente e amável. Uma massa de cabelo negro caía de seus ombros. Malvin não se lembrava de Millicent Braw – ele não devia ter mais do que 3 ou 4 anos quando ela entrou na clareira onde todos se reúnem no fim das contas –, mas  sabia que era ela.

 O menino embrulhou de novo, recolocou no lugar e pegou a bolsinha. Pelo tato, haviam coisas duras e deformadas dentro daquilo. Eram pequenos tronquinhos com ideogramas cravados em suas estruturas deformadas, porém mais um objeto esperava para ser descoberto alí. Mais trovões retumbaram, o menino se contraiu com a surpresa, e o objeto que esteve escondido bem no fundo do baú caiu da mão de Malvin

 Era a moeda da sorte do pai.

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AS AVENTURAS DE MALVIN (CAPÍTULO III) – FÚRIA

  Quando teve certeza, de que a mãe estava dormindo, Malvin foi até a pequena sala dos fundos onde ficava o baú de Grande Braws, uma silhueta quadrada debaixo do que sobrou de um velho cobertor, ao lado da entrada. Quando ele disse para o Cobrador que só conhecia duas tranas na Vila da Árvore, o homem respondeu: Ah, eu acho que cê sabe de outra, não sabe?

 Malvin tirou o cobertor e olhou o baú do padrasto. Aquele que Grande Braws às vezes acariciava como um animal de estimação muito amado e onde geralmente se sentava à noite, para fumar cachimbo com a porta dos fundos aberta a fim de deixar a fumaça sair.

 Malvin correu de volta para a entrada da casa – de meias, para não arriscar acordar a mãe – e espiou pelas janelas da frente. O pátio estava vazio, e não havia sinal do padrasto na estrada chuvosa. O menino não esperava outra coisa. Braws estaria no Gitty’s, gastando o que sobrou do dinheiro antes de cair inconsciente.

 Espero que alguém dê uma surra nele para Braw sentir o gosto do próprio remédio. Eu mesmo faria, se fosse grande o bastante.

 Ele voltou para o baú com passos silenciosos, se ajoelhou diante do objeto e tirou a chave do bolso. Era uma coisinha minúscula de prata do tamanho de metade de uma moeda, e estranhamente quente nos dedos, como se estivesse viva. O buraco da fechadura na tranca de latão era bem maior. A chave que ele me deu jamais servirá nisso, pensou Malvin. Então ele se lembrou do Cobrador, que disse: É uma chave mágica. Ela abre qualquer coisa, mas somente uma única vez.

 Malvin colocou a chave na fechadura, onde se encaixou perfeitamente como se tivesse sido feita o tempo todo para aquele lugar exato. Quando o menino aplicou pressão, a chave girou suavemente fazendo estalos altos a cada vez que girava quarenta e cinco graus. Será que sua mãe acordaria? O calor foi embora, a chave agora estava tão fria que seus dedos queimariam caso persistissem.

 - Depois disso, é tão inútil quanto peido. – Sussurrou Malvin e então, abriu o baú.

 Antes de olhar o que tinha dentro, olhou para os lados procurando por alguém que pudesse ter encontrado o garoto bisbilhotando. Mas os gemidos doces da mãe adormecida ainda enchiam a casa de riqueza e pureza. Braw não havia chegado, não poderia.

 A única coisa que observava Malvin, era uma mariposa, presa a porta do carvalho mais escuro. Os olhos de coruja encaravam o menino como se quisessem apenas protege-lo, pelo menos essa era a forma mais otimista de ser ver aquela tão bela e imprestável criatura.

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As Aventuras de Malvin (Capítulo II) - A Chave Mágica

  NO CAPÍTULO ANTERIOR (SEKAIMADEWA) –

- Um presente para você, jovem Malvin. É uma chave. Sabe por que ela é especial?

 Tim fez que não com a cabeça.

- É uma chave mágica. Ela abre qualquer coisa, mas somente uma única vez. Depois disso, é tão inútil quanto peido na ventania, então tenha cuidado ao usá-la! – O Cobrador riu como se fosse a piada mais engraçada que ouviu na vida. O hálito revirou o estômago de Malvin.

- Às vezes ele abre aquilo – disse Malvin em voz morosa, de quem fala durante um sono. – Ele retira a barra de amolar, para a lamina do machado. Mas aí tranca de volta. A noite, ele se senta em cima para fumar, como se fosse uma cadeira.

- Eu acamparei a uma roda ou duas ao longo da Vila Élfica amanhã, por uma ou duas noites – falou o Cobrador na voz rouca e monótona. – Foi uma longa viagem, e estou cansado de tanta papagaiada que tenho que escutar. Há crianças da noite e cobras na floresta, mas não há papagaios.

 Você nunca está cansado, pensou Malvin. Não você.

- Venha me ver se quiser. – Sem risinho dessa vez; dessa vez, ele conteve o riso como uma menina sapeca. – E se tiver coragem também, é claro. Mas venha à noite, porque este filho da terra gosta de dormir durante o dia quando tem chance. Ou fique aqui, se for tímido como uma bixa. Não me importo. UPA!

- O baronato lhes agradece – despediu-se o Cobrador ao tocar um dedo enluvado na lateral do chapéu de aba larga. Depois ele deu meia-volta com o cavalo negro e foi para a chuva. A última coisa que Malvin viu de relance foi esquisita, ele viu que em sua grande capa negra estava talhado com tinta prateada as palavras: BLACK BIRD

  CONFIRA JÁ O NOVO CAPÍTULO!

  Grande Braw desceu correndo os degraus, pegou Malvin pelos ombros e começou a sacudi-lo. A chuva emplastrou o cabelo ralo de Braw nas laterais do rosto e escorreu pela barba. Negra quando ele se enlaçou na corda de seda com Emma, a barba agora era muito grisalha.

- O que ele te disse? Foi a meu respeito? Que mentiras ele contou? Diga!

 Malvin não conseguiu dizer nada. A cabeça ia para frente e para trás com força suficiente para que os dentes batessem.

 Emma desceu correndo as escadas

- Pare! Deixe-o em paz! Você prometeu que nunca...

- Não se meta no que não te interessa, mulher... – Disse Grande Braw, que bateu nela com a lateral com punho. A mãe de Malvin caiu na lama, onda a chuva abundante enchia os rastros deixamos pelo cavalo do Cobrador.

- Seu desgraçado! – berrou Malvin – Você não pode bater na minha mãe, não pode nunca!

 Ele não sentiu nenhuma dor imediata quando Braw aplicou um golpe similar, mas uma luz branca entrou rasgando no seu campo de visão. Quando passou, Malvin se viu deitado na lama ao lado da mãe. Estava atordoado, os ouvidos zuniam, e a chave ainda ardia como carvão em brasa no bolso.

 - Que Hades os carregue – bradou Braw e depois saiu a passos largos, chuva afora. Depois do portão ele virou à direita, na direção do pequeno trecho da rua principal da Vila da Árvore. A caminho do Gitty’s, Malvin não tinha dúvida. Grande Braw se manteve afastado da bebida durante todo o outono, pelo menos até onde Malvin sabia, mas hoje à noite ele não ficaria longe. Malvin viu a expressão triste no rosto molhado da chuva da mãe, com o cabelo escorrido sobre a bochecha que se avermelhava, suja de lama, e notou que ela também sabia.

 Malvin passou o braço pela cintura da mãe, e Emma apoiou o dela nos ombros do filho. Eles subiram devagar os degraus e entraram na casa.

  Emma praticamente desmoronou na cadeira da mesa na cozinha. Malvin serviu água da jarra na bacia, molhou um pano e colocou com delicadeza no lado do rosto, que começou a inchar, Ela segurou por um tempo, depois ofereceu ao filho, sem dizer nada. Para agradá-la, ele pegou e colocou no próprio rosto. A sensação era boa e fria contra o calor pulsante.

 - É uma bela família não acha? – perguntou ela, com uma tentativa de humor. – A mulher foi espancada, o menino apanhou, e o novo maridão foi encher a cara.

 Malvin não sabia o que dizer diante disso, então não falou nada.

 Emma abaixou a cabeça sobre a base da mão e olhou fixamente a mesa.

 - Eu fiz uma tremenda confusão. Estava assustada e não sabia o que fazer, mas isto não é desculpa.

 - Estaríamos melhor expulsos dessa terra, tenho certeza disso. – Disse Malvin sem pensar muito se dizendo isso, poderia acabar deixando sua mãe se sentindo ainda mais culpada.

 Expulsos do lugar? Longe do terreno? Já não basta que o machado do pai e a moeda da sorte estivessem sido derretidos pelas chamas da dragonesa?

Mas eu tenho uma chave, pensou Malvin, e os dedos desceram até o bolso da calça para sentir o formato metálico.

 - Aonde ele foi? – perguntou Emma, e Malvin sabia que ela não falava de Grande Braw.

 A uma roda ou duas pela Trilha além da Vila Élfica. Onde esperará por mim.

- Eu não sei, mamãe. – Até onde se lembrava, esta foi a primeira vez na vida que Malvin havia mentido para ela.

 - Mas nós sabemos aonde o maridão foi, não sabemos? – Ela riu, depois fez uma careta porque o rosto doeu. – Ele prometeu em nome de Zihiombi Redhouse que iria parar de beber e prometeu para mim também, mas ele é fraco. Ou... a culpa é minha? Você acha que eu o levei a beber?

 - Não levou não, mamãe. – Mas Malvin imaginou se essa não seria a verdade. Não da maneira que ela quis dizer, porque ela seria uma chata ou deixaria a casa suja, ou negaria ao marido o que homens e mulheres faziam na cama depois que escurecia, mas de outra forma qualquer. Havia um mistério ali, e ele se perguntou se a chave no bolso seria capaz de resolvê-lo. Para controlar o impulso de tocá-la novamente. Malvin se levantou e foi à despensa – Quer algo pra comer? Ovos? Eu faço ovos mexidos se você quiser.

 Emma deu um sorriso fraco.

 - Obrigada, filho, mas não estou com fome. Acho que vou me deitar. – Ela se levantou um pouco trêmula.

 Malvin a ajudou a entrar no quarto. Lá ele fingiu olhar coisas interessantes fora da janela enquanto a mãe tirava o vestido sujo de lama e vestia a camisola. Quando o filho se virou novamente, ela estava debaixo das cobertas. Emma bateu no lugar ao lado dela, como fazia às vezes quando Malvin era pequeno. Naqueles tempos, o pai às vezes estava na cama com ela, com as ceroulas compridas de lenhador e fumando um dos cigarros de palha.

 - Não posso expulsá-lo – explicou Emma – Eu expulsaria se pudesse, mas agora que a corda foi atada, o lugar é mais dele do que meu. A lei pode ser cruel para uma mulher. Nunca tive motivo para pensar a respeito disso antes, mas agora... agora... – Os olhos ficaram vidrados e distantes. Ela dormiria em breve, era uma boa coisa.

 Malvin beijou a bochecha que não estava machucada e fez menção de se levantar, mas Emma o conteve.

 - O que o Cobrador te disse?

 - Ele me perguntou se eu gostava do novo padrasto. Não lembro o que respondi. Eu estava assustado.

 Ela suspirou com o alívio: - Quando ele te cobriu com a capa, eu fiquei assustada também. Pensei que ele queria te levar embora. Ela já levou uma criança daqui a sete anos. – Emma fechou os olhos, depois abriu de novo, bem devagar. Havia algo neles que poderia ter sido horror. – Eu me lembro dele visitando meu pai quando eu era apenas uma menininha que mal tinha largado as fraldas. O cavalo negro, as luvas e a capa pretas, a sela de preta. O rosto branco me provocou pesadelos; é tão comprido! – ela deu uma pausa longa – E sabe do que mais, Mal?

 O menino balançou a cabeça lentamente, de um lado para o outro.

 - Ele até mesmo carrega a capa negra com o nome de um demônio nas costas.

 - BLACK BIRD? – perguntou o menino sem vacilar.

- Não diga isso. Em nenhum lugar. Os presságios existem, querido.

 Emma fechou os olhos novamente. Desta vez, eles não se abriram de novo, e Malvin saiu de fininho do quarto.

 No corredor, uma mariposa enorme estava pousada em sua porta do quarto. As asas tão negras quanto a capa do cobrador.

   - TOEJULLY

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As Aventuras de Malvin - Black Bird

A COLHEITA PASSOU; a Lua Caçadora ficou pálida e cheia e puxou o arco; os primeiros vendavais de Terra Ampla vieram rugindo do oeste. E exatamente quando parecia que ele não viria afinal de contas, o cobrador do baronato surgiu na Vila da Árvore trazido por um daqueles ventos frios, montado no cavalo alto e negro, tão magro quanto a morte. A capa preta e pesada tremulava como a asa de um morcego. Debaixo do chapelão (tão preto quanto a capa), o rosto claro como uma lâmpada virava de um lado para o outro sem parar, marcava cada nova cerca aqui, uma vaca ou três adicionais a um rebanho acolá. Os habitantes do vilarejo resmungavam, mas pagavam, e, se não pagassem, a terra seria tomada em nome de Prontera. Naqueles velhos tempos, talvez até mesmo alguns sussurrassem que não era justo, que eram muitos impostos, que O Grande Arcano morrera havia muito tempo (se é que existiu algum dia), e que o cobrador já fora pago várias vezes, tanto em sangue quanto em prata. Talvez alguns deles já esperassem que o Homem Bom aparecesse e os tornasse fortes o suficiente para dizer Acabou, já chega, o mundo mudou, os tempos mudaram.

 Talvez, mas não naquele ano, e não por muitos e muitos que viriam.

 Mais à tarde, enquanto as nuvens inchadas rolavam pelo céu e as espigas amarelas de milho batiam no jardim de Emma como dentes em uma mandíbula solta, sai Cobrador passou com o cavalo alto e negro entre as colunas do portão que o próprio Grande Mordon instalou (enquanto Malvin observava e ajudava quando era solicitado). O cavalo andou devagar e solenemente até os degraus da entrada. Ali parou, bufou e balançou a cabeça. Grande Braw estava na varanda e mesmo assim teve que erguer os olhos para enxergar o rosto pálido do visitante. Braw segurava contra o peito o chapéu amassado. O cabelo preto ralo (que agora mostrava as primeiras mechas grisalhas, pois ele se aproximava dos 40 anos e em breve seria velho) voou em volta da cabeça. Atrás dele, na porta, estavam Emma e Malvin. Ela passou o braço pelos ombros do menino e o apertou com força, como se temesse (talvez fosse intuição de mãe) que o Cobrador pudesse leva-lo embora.

 Por um instante houve silêncio, a não ser pelo tremular da capa do visitante indesejado e pelo vento, que cantava uma melodia sombria por sob as calhas. Então o cobrador do baronato se inclinou para frente e observou Braw com os olhos grandes e negros que pareciam não piscar. Malvin viu que os lábios eram vermelhos como os da mulher que pintava a boca com garança fresca. De algum lugar do interior da capa ele tirou não um caderno de notas, mas sim um rolo de pergaminho de verdade, e o desenrolou, pois era longo. O Cobrador examinou o pergaminho, enrolou novamente, depois recolocou em fosse lá que bolso interno de onde tinha saído. A seguir, ele voltou a olhar para Grande Braw, que se encolheu e olhou para os pés.

 - Braw, não é? – O cobrador tinha uma voz ríspida e rouca que deixou Malvin com a pele arrepiada. Ele já havia visto o visitante antes, mas apenas de longe; o pai fazia questão de manter o filho longe de casa quando o cobrador de impostos do baronato fazia as visitas anuais. Agora Malvin entendeu o motivo. Ele achou que teria pesadelos aquela noite.

- Braw, ié. – A voz do padrasto estava alegre de um modo hesitante. Ele conseguiu erguer o olhar novamente. – Bem-vindo, sai. Longos dias e belas...

 - Sim, isso aí, isso aí – o Cobrador interrompeu com um gesto de desprezo. Os olhos negros agora passaram por cima do ombro de Braw. – E... Emma, não é? Agora são dois em vez de três, me disseram, porque aconteceu uma desgraça com Grande Mordon. – A voz estava baixa, era pouco mais do que um tom monótono. Como ouvir um surdo tentando catar uma canção de ninar, pensou Malvin.

 - Isso mesmo – confirmou Grande Braw. Ele engoliu em seco tão alto que Malvin ouviu, depois começou a balbuciar. – Ele e eu estávamos na floresta, acredite, em um dos nossos pequenos lotes, perto da Trilha de Zelda. Temos quatro ou cinco, todos marcados certinho com nossos nomes, assim mesmo, e eu não mudei, porque na minha cabeça Grande Mordon ainda é meu parceiro e sempre será. Nós nos separamos um pouco, então eu ouvi um sibilo. A pessoa reconhece o som ao ouvi-lo, porque não há barulho em Kanaban igual ao sibilo de uma dragonesa tomando fôlego antes de...

- Silêncio – cortou-lhe o Cobrador. – Quando quero ouvir uma fábula, gosto que ela comece com “era uma vez”.

 Braw começou a dizer outra coisa, talvez para rogar o perdão, e pensou melhor. O Cobrador apoiou o braço no pomo da sela e o encarou.

 - Soube que você vendeu a casa para Rupert Anderson. Sai Braw.

- Sim, e ele me passou para trás, mas eu...

 O visitante o interrompeu.

- O imposto são nove moedas de prata ou uma de rodita, que eu seiq eu vocês não têm nessas quebradas, mas sou obrigado a lhe informar, conforme o contrato original de cobrança. Uma moeda pela transação, e outro pela casa onde você agora senta a bunda ao pôr do sol e com certeza esconde o pinto depois que a lua nasce.

 - Nove? – arfou Grande Braw – Nove!? Isso é ...

 - Isso é o quê? – perguntou o Cobrador com a voz ríspida e sussurrante. – Cuidado com o que vai responder, Braw Jullius, filho de Mathias, neto de Peter Manco. Muito cuidado porque, embora seu pescoço seja grosso, creio que se esticaria e ficaria fino. Ié, creio que mesmo.

 Grande Braw ficou pálido... embora não tão pálido quanto o cobrador do baronato.

 - É bem justo. Era tudo o que eu queria dizer. Vou pegar o dinheiro.

 Ele entrou na casa e voltou com uma bolsa de pele de cervo. Era a bolsa de dinheiro de Grande Mordon, aquela sobre a qual a mãe de Malvin chorou na véspera de Terra Plena. Um dia em  a vida parecia justa, embora Grande Mordon estivesse morto. Braw entregou a bolsa para Emma e deixou que ela contasse as preciosas moedas de prata do marido nas mãos em concha.

 Durante tudo isso, o visitante permaneceu sentado em silêncio no cavalo negro e alto, mas, quando Grande Braw fez menção de descer os degraus e entregar o imposto – quase tudo o que eles tinham, mesmo com o pouquinho dos ganhos de Malvin adicionados ao pote -, o Cobrador fez que não com a cabeça.

 - Fiquei aí. Quero que o menino traga para mim, porque ele é bonito, e eu vejo o rosto do pai no semblante. Ié, vejo muito bem.

 Malvin pegou o punhado de moedas (tão pesado!) de Grande Braw e mal ouviu o sussurro no ouvido.

 - Tome cuidado e não deixe cair, seu menino estúpido.

 Malvin desceu os degraus da varanda como um menino em um sonho.

 Ele ergueu as mãos em concha, e antes de perceber o que estava acontecendo, o Cobrador agarrou seus pulsos e puxou para cima do cavalo. Malvin viu que o arco e o pomo da sela eram decorados com uma cascata de runas de prata: luas, estrelas, cometas e taças que vertiam fogo frio. Ao mesmo tempo, ele se deu conta de que o punhado de moedas sumiu. O Cobrador pegara o dinheiro, embora Malvin não se lembrasse exatamente de quando aquilo acontecera.

 Emma gritou e correu à frente.

 - Contenha sua mulher! – trovejou o Cobrador, tão perto do ouvido de Malvin que ele quase ficou surdo daquele lado.

 Braw pegou a esposa pelos ombros e a empurrou bruscamente para trás. Ela tropeçou e caiu nas tábuas da varanda, a saia comprida voou em vota dos tornozelos.

 - Mamãe! – berrou Malvin. Ele tentou pular da sela, mas o Cobrador dominou o menino facilmente. O visitante cheirava a carne de fogueira e suor frio e vencido.

 - Fique quieto, jovem Malvin Jullius, ela não se machucou nadica. Veja como se levantou toda lépida e fagueira. – Então, o Cobrador se dirigiu a Emma, que realmente tinha se levantado. – Não se preocupe, sai, apenas quero conversar com ele. Por acaso eu faria mal a um futuro contribuinte do reino?

 - Se fizer mal a ele, eu te mato, seu demônio. – falou Emma.

 Braw ergueu o punho para ela.

 - Cale essa boca, imbecil!

 Emma não recuou diante do punho. Ela só tinha os olhos para Malvin, sentado no cavalo alto e negro em frete ao Cobrador, cujos braços estavam cruzados sobre o peito do filho.

 O Cobrador sorriu para os dois na varanda, o homem com o punho ainda erguido para bater, a mulher com lágrimas que escorriam pelas bochechas.

 - Braw e Emma! – declarou ele – O casal feliz!

 O Cobrador controlou a montaria com os joelhos, deu meia-vota e foi devagar até o portão, com os braços firmes em volta do peito de Tim. O corpo quente e pouco definido de um pequeno garoto preso ao seu. Ele soltava o hálito podre na bochecha do menino. No portão, fez a pressão com os joelhos novamente e o cavalo parou. No ouvido de Tim que zunia, o homem sussurrou:

 - Cê gosta do novo padrasto, jovem Malvin? Fale a verdade, mas fale baixo. Esta é a nossa palestra, e eles não participam.

Malvin não quis se virar, não quis que o rosto pálido do Cobrador ficasse mais perto do que já estava, mas o menino tinha um segredo que o corroía. Então se virou e sussurrou no ouvido do Cobrador:

 - Quando bebe, ele bate na minha mãe.

 Sua voz próxima ao tímpano, o calor de sua respiração... aquilo só podia ser doentil.

 - È mesmo? Ah, bem, será que isto me surpreende? Afinal, o pai dele por acaso não batia na própria mãe? E o que aprendemos como criança vira um hábito, é verdade. – ele suspirou e olhou para o céu – Quem dera Dioniso percebesse que os humanos podiam ser mais felizes sem suas maldições e perdições.

 Uma mão enluvada jogou uma ponta da capa negra e pesada sobre os dois como um cobertor, e Malvin sentiu a outra mão enluvada enfiar algo pequeno e duro no bolso das suas calças.

 - Um presente para você, jovem Malvin. É uma chave. Sabe por que ela é especial?

 Tim fez que não com a cabeça.

- É uma chave mágica. Ela abre qualquer coisa, mas somente uma única vez. Depois disso, é tão inútil quanto peido na ventania, então tenha cuidado ao usá-la! – O Cobrador riu como se fosse a piada mais engraçada que ouviu na vida. O hálito revirou o estômago de Malvin.

 - Eu... – Ele engoliu em seco. – Não tenho nada para abrir. Não há trancas na Vila Élfica, a não ser no boteco e na cadeia.

 - Ah, acho que cê sabe de outra, não sabe?

 Tim encarou os olhos alegremente sombrios do Cobrador e não respondeu. O homem assentiu com a cabeça, porém, como se o menino tivesse falado.

 - O que você está dizendo para o meu filho? – berrou Emma da varanda –Não envenene os ouvidos dele, demônio!

- Não preste atenção a ela, jovem Malvin, pois sua mãe saberá em breve. Ela saberá muito, mas enxergará pouco. – Ele deu um risinho de deboche. Os dentes eram muito grandes e muito brancos. – Uma charada para você! Pode resolvê-la? Não? Não se importe, a resposta virá com o tempo.

 - Às vezes ele abre aquilo – disse Malvin em voz morosa, de quem fala durante um sono. – Ele retira a barra de amolar, para a lamina do machado. Mas aí tranca de volta. A noite, ele se senta em cima para fumar, como se fosse uma cadeira.

 O Cobrador não perguntou o que era aquilo.

 - E ele toca sempre que passa, jovem Malvin? Como um homem tocaria no velho cachorro favorito?

 Grande Braw fazia isso, é claro, mas Malvin não disse. Não precisava dizer. O menino teve a impressão de que não havia segredo de que ele conseguiria esconder da mente que tiquetaqueava atrás do rosto branco e comprido. Nenhum segredo.

 Ele está brincando comigo, pensou Malvin. Sou apenas uma criança diversão em um dia tedioso em um vilarejo tedioso que o Cobrador em bere deixará para trás. Mas ele quebra os brinquedos. Basta observar o sorriso para saber.

 - Eu acamparei a uma roda ou duas ao longo da Vila Élfica amanhã, por uma ou duas noites – falou o Cobrador na voz rouca e monótona. – Foi uma longa viagem, e estou cansado de tanta papagaiada que tenho que escutar. Há crianças da noite e cobras na floresta, mas não há papagaios.

 Você nunca está cansado, pensou Malvin. Não você.

- Venha me ver se quiser. – Sem risinho dessa vez; dessa vez, ele conteve o riso como uma menina sapeca. – E se tiver coragem também, é claro. Mas venha à noite, porque este filho da terra gosta de dormir durante o dia quando tem chance. Ou fique aqui, se for tímido como uma bixa. Não me importo. UPA!

 Isto ele falou para o cavalo, que voltou devagar para os degraus da varanda, onde Emma estava torcendo as mãos, com Braw ao lado, irritado. Os dedos magros e fortes do Cobrador se fecharam nos pulsos de Malvin outra vez, como algemas, e o ergueram. Um momento depois, o menino estava no chão, com o olhar erguido para o rosto branco e o sorriso nos lábios vermelhos. A chave ardia nas profundezas do bolso. De cima da casa veio um estrondo de trovão e começou a chover.

- O baronato lhes agradece – despediu-se o Cobrador ao tocar um dedo enluvado na lateral do chapéu de aba larga. Depois ele deu meia-volta com o cavalo negro e foi para a chuva. A última coisa que Malvin viu de relance foi esquisita, ele viu que em sua grande capa negra estava talhado com tinta prateada as palavras: BLACK BIRD

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