"O meu caso não se compara com os dramas vividos por mulheres que são agredidas fisicamente, mas é um caso de relacionamento abusivo com todas as características de agressão psicológica. Resolvi escrever aqui como um desabafo e principalmente como um alerta e reconhecimento, é difícil as pessoas perceberem comportamentos abusivos como agressão e reconhecer seus males, no entanto é muito mais comum nas relações íntimas do que se imagina e tem graves consequências, tais como o suicídio.
Fiz questão de descrever vários fatos, todos abusivos e muito comuns no dia-a-dia de nós, mulheres, e não encarados como violência, mas reconheçam!
Foi um relacionamento curto de 8 meses, mas o suficiente pra escrever uma história triste. Eu o conheci num momento frágil, onde eu estava buscando me encontrar. Nunca tive relacionamentos heterossexuais afetivos com sucesso, e antes dele tinha resolvido experimentar um homossexual pra tentar a sorte e não tive. Quando o conheci estava revoltada, dando pra todo mundo. O conheci na casa de uma amiga, onde ele estava dividindo apartamento. No começo neguei as investidas dele, mas, como uma mulher carente e devido às insistências, resolvi nos dar uma chance. Transamos de primeira, afinal o que eu queria era transpor as minhas regras, os meus padrões. Dormi na casa dele por muitos dias, e isso pra ele configurou um relacionamento sério, eu não queria isso pra mim, não queria me limitar, o objetivo era experimentar, me conhecer, mas a ‘força de vontade’ dele era tanta que ele conseguiu.
Num determinado momento do meu relacionamento essa transa de primeira virou motivo pra ele me chamar de puta, de ele dizer pra mim que eu não era digna de respeito, que ele quis assumir a relação comigo somente porque já estava apaixonado, mas que, se fosse outro homem, já teria me descartado. Ele me ofendia desse jeito, não respeitava as minhas decisões, não sabia lidar com as diferenças – ele enxerga a buceta como algo "sagrado" – eu não.
De outra vez ele descobriu invadindo meu facebook que eu tinha transado com outro rapaz na mesma época em que eu ficava com ele, numa viagem que fiz. Tirou tudo o que era meu do quarto dele e me mandou embora pra minha casa. Acusou-me mais uma vez de inúmeras coisas, como traição, desrespeito com ele e comigo mesma, inclusive – porque fazendo isso eu me tornaria uma desclassificada, desprezada pela sociedade –, acusou-me de burra porque eu tinha um homem diferenciado e não sabia reconhecer isso.
Eu não devia explicação nenhuma a ele, o corpo é meu e eu faço dele o que quiser, mesmo se isso fosse considerado uma traição eu não merecia ser tratada como uma "coisa", erro maior ele cometeu invadindo a minha privacidade.
Eu voltei pra casa dele depois, e ainda o pedi em namoro – ele me convenceu de que era diferenciado quando jogou na minha cara tudo o que tinha feito por mim – tinha me dado proteção, de maneira útopica, é claro, ele me protegia do mundo que não me tinha como "alvo", mas ele me fazia alvo do egoísmo e do machismo dele; do carinho que ele tinha comigo que chegava a ser sufocante; da indulgência comigo – porque nenhum homem trataria uma ‘puta’ com tanto afeto.
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Outro episodio nesse mesmo relacionamento foi quando eu decidi sair com os amigos da minha ex-namorada e que também eram meus amigos. Enquanto ainda estávamos dormindo, ele teve um surto, levantou da cama já gritando, eu acordei desesperada, completamente assustada, ele gritava que sabia tudo que ia acontecer, que eu achava que ele era um idiota, mas eu ainda era ‘muito faixa branca’ para consegui isso com ele. Gritou que sabia que, quando eu saísse com eles, eu dormiria por lá, e que, do jeito que eu era, terminaria transado com alguém da mesma maneira que eu transei com o outro quando viajei. Ele disse que não confiava em mim e que isso era tudo culpa minha, porque antes ele tinha me dado uma oportunidade de me mostrar confiável mas eu fiquei com outro cara.
Dessa vez ele se exaltou tanto que jogou um banco de madeira na direção do guarda-roupa, eu não sabia o que fazer, fiquei atônita, queria sair correndo dali, mas tinha muito medo do jeito que ele podia reagir caso eu me levantasse, só conseguia pedir que ele parasse, o meu único argumento era dizer ‘pare, eu não vou mais, se você não quer, eu não irei’, mas ele não parou! Abriu a porta do guarda roupa e jogou todas as minhas coisas no chão (isso ainda me esculhambando). Eu não entendia o porquê dessa reação, ela não tinha fundamento, não fazia sentido – nós estávamos bem, tínhamos ido dormir agarrados depois de trocarmos carinho – o que podia ter acontecido?
Ele ficava andando de um lado pro outro, como se tivesse tomado por um ódio desmedido e eu torcia pra que os pais dele percebessem a situação. Em seguida ele abriu a porta, pegou um monte de sacola e me mandou juntar tudo porque eu iria desaparecer da vida dele, porque ele não aguentava mais viver perturbado com a possibilidade de ser traído, porque desde a minha viagem ele tinha perdido a paz. Quando comecei a catar minhas coisas no chão, me desabei em lagrimas, foi a maior humilhação da minha vida, nessa hora a mãe dele apareceu pra saber o que estava acontecendo, eu achava que ele ia se intimidar com a presença dela, mas ele continuou me ofendendo e num determinado momento saindo do quarto disse: tira essa menina da minha frente se não eu faço uma besteira. Nessa hora eu pensei que ele fosse me matar, ele estava muito inquieto.
Consegui ligar pra minha mãe, com a ajuda da mãe dele, e avisar que eu estava indo embora pra ela me receber porque já estava tarde (a briga durou até a madrugada) quando peguei o telefone pra ligar pro táxi, ele puxou da minha mão e disse que eu não ia pra canto nenhum, que eu tinha obrigação de me explicar e fazê-lo esquecer isso. Eu me desesperei, eu não aguentava mais, aquilo era tortura, minha cabeça, minhas orelhas já estavam pegando fogo, mas com medo eu fiquei, conversei e ele se acalmou, mas pediu que eu dormisse lá porque não queria que minha mãe pensasse mal dele tendo me expulsado de lá na madrugada.
No outro dia, com as malas ainda prontas, me aprontei pra ir embora, eu estava decidida que não tinha mais condições, mas não adiantava eu estar decidida se eu tinha MEDO dele, medo da voz, medo dos movimentos, medo de morrer.
Quando ele me viu pronta começou tudo de novo, os gritos, os choros, as agonias, até se jogar no chão, ele se jogou – era como uma criança mimada, só que, dessa vez, ao mesmo tempo em que ele dizia que eu era uma vadia, me pedia pra ficar. Eu só queria acabar com aquilo, resisti nos primeiros minutos, argumentei que só queria ir em casa espairecer, ter colo da minha mãe, e depois voltaria, mas ele não queria aceitar, disse que sabia se eu saísse não voltaria mais. Por medo, mais uma vez eu fiquei.
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Um terceiro episodio foi em um sábado à noite em que fomos à casa de uma amiga dele. Éramos quatro casais, uma reunião íntima com bebidinhas e comidinhas. A música era o som de um notebook.
Fazia tempo que eu não me divertia, estava decidida a isso, ainda mais porque essa amiga tinha o mesmo gosto musical que eu, e as minhas músicas dentro do nosso quarto não tinham vez. Comecei a beber, a dançar e a conversar com as pessoas, uma coisa atípica em muito tempo, eram pessoas que pertenciam a um mundo que eu gostaria de pertencer, mas eu me privava porque ele sempre me dizia que ‘isso é bom agora quando tu estás nova, mas depois quando tu procurar um sentido não vai encontrar’, que ‘sabia que não era essa vida que eu queria, que na verdade eu não era aquilo, eu só era fraca e influenciável' – eu me forcei a acreditar nisso tudo. Depois de dançar, fui ao banheiro e ele foi atrás de mim, entrou no banheiro e pediu que eu parasse de dançar porque o namorado da menina estava olhando demais pra mim. Eu estava dançando muito inocente – era uma casa com somente mais três casais conhecidos – pedi que ele deixasse de besteira porque eu queria dançar, e, mesmo com medo, dancei.
Percebia que ele me olhava o tempo todo recriminando a minha felicidade. Ele já estava ficando tenso, mas decidir que hoje era o meu dia de diversão, e foi, mas só até o momento que chegamos em casa.
Ele disse que eu estava dançando pra seduzir o namorado da outra menina, que eu gostava dessas situações, e que mais uma vez eu tinha exposto ele de maneira ridícula na frente de todo mundo, que todos tinham percebido e ele tinha ficado com nojo de mim – não era verdade nada disso, nessa época eu mal sabia se ainda o queria, quanto mais me entregar a outro. Nesse dia eu estava mais ao meu favor e rebati tudo o que ele dizia, e num determinado momento, quando ele disse que não sabia o que fazer comigo eu gritei pra ele me matar; eu disse: ‘faça isso agora! Não foi isso que você disse que faria comigo da última vez, me mate porque eu já não suporto mais nada disso’. Nessa hora, ele apertou o meu braço e me sacolejou pedindo que eu calasse a boca pra não acordar os pais dele, e que se isso acontecesse seria pior pra mim – eu não me calei porque os xingamentos também não pararam.
Ele entrou no chuveiro e eu fui atrás, ele me deu um empurrão que perdi o equilíbrio, eu estava bêbada, mas não foi só por isso. Nessa mesma madrugada liguei pra minha mãe avisando que iria voltar pra casa, era isso o que eu precisava fazer, mas não foi isso o que eu fiz. Ele começou a se vitimizar, conseguiu inverter o jogo e eu me senti culpada – porque eu poderia ter evitado aquela situação se tivesse atendido ao pedido dele, eu poderia ter me privado a leveza de um momento feliz para mantê-lo em ordem temperamental, eu não pensei em preservar o meu relacionamento, então, eu errei.
No outro dia a briga continuou, muitas acusações, muito medo e um psicológico extremamente ferido, era tanto medo de morrer que eu me anestesiei. Enquanto ele me ofendia, eu pedia calma, ele estava transtornado, queimou todas as nossas cartinhas de ‘amor’ – jogou álcool e tocou fogo – todas as vezes que ele saia e entrava no quarto eu pensava que ele voltaria com uma faca na mão pra me ferir, o nervosismo e a atenção foi tão grande que eu passei a vomitar muitas vezes seguida, eu estava tonta, com a minha cabeça fervendo e eu só queria ser salva, mas ninguém podia fazer nada, só eu mesma.
Depois que eu vomitei ele saiu de casa e voltou com duas lasanhas na mão pra almoçarmos, e me obrigou a comer. Era assim sempre, depois das brigas ele fingia que nada tinha acontecido, que nem eu nem ele tínhamos nos magoado. Ele deletava tudo da memória dele e me tratava como se eu tivesse feito o mesmo.
A decisão final foi quando, num fim de semana, ele ficou acordando nas madrugadas do nada porque sonhava comigo traindo ele e perdia o sono. No primeiro dia ignorei, mas no segundo dia fiquei pensando que, num acordar desses, ele podia achar a faca que eu tinha escondido e me fazer mal. Passei a acreditar na realidade disso, que existia essa possibilidade comigo também, não era só com as mulheres em capas de jornais. Fui trabalhar e passei no banco, senti falta de dinheiro – ele tinha pegado meu cartão e sacado dinheiro sem me pedir. Quando cheguei em casa liguei pra ele e coloquei um fim. Sim, liguei, esqueci essa ideia de bons modos porque ou eu me arriscava a apanhar ou eu me defendia, e eu escolhi me preservar.
Foi muito drama, muito choro, muita cobrança. Os filhos que eu prometi e não os dei, a desconsideração por ter sido por telefone, a injustiça por ser com alguém que só me ama; foram muitas promessas de mudanças e transformações, juras de tratamento espiritual e psicológico, mas eu não acreditei, tinha tomado a minha decisão.
De lá pra cá foram muitas ameaças, muitas privações, as correntes ainda não foram rompidas. Todos os bens que adquiri nesses meses que passei na casa dele ainda continuam lá, pois ele só me devolveria se eu fosse pessoalmente buscá-las, e eu jamais me arriscaria tanto. Tenho medo de encontrá-lo por aí, não sei o que isso pode despertar em mim, muito menos nele.
Fui agredida, chantageada, abusada, perseguida, roubada e humilhada pelo homem que me fez sonhar, desconstruir esses sonhos e me desapegar do desejo de 'dar certo' é difícil, traz sofrimento. Desarticular os mecanismos que me faziam vê-lo sempre como vítima dos problemas familiares, vítima dele mesmo e de mim é um trabalho árduo de conscientização. Acreditar que eu não tinha uma MISSÃO a ser cumprida, nem a obrigação de resgatar ninguém da marginalidade e que eu não preciso me frustrar porque não consegui êxito em melhorá-lo é complicado. Hoje, depois de quase três meses, ele já tem outra pessoa, que, assim como eu, se tornou instantaneamente o amor da vida dele (coitada). E mesmo com tudo isso, eu ainda me inferiorizo, e me assusta a possibilidade dela conseguir transformá-lo e eu não – eu teria sido incompetente.
Ao mesmo tempo em que eu saio do lugar de vítima para 'autora' quando busco justificar o comportamento dele, eu me encho de ódio de mim mesma por isso, me sinto burra e fraca. Sinto ódio dele também por me fazer viver todo esse caos e esses conflitos. Perdi tempo, perdi autoestima, perdi a paz de espírito e perdi a capacidade de me sentir limpa de coração – porque saber que ele já reconstruiu a vida e que eu ainda estou aqui presa a todos esses fatos me faz querer vingança, não por mim, mas pela vida."
Anônima.
Resposta da página:
Muito obrigada pelo envio do seu relato. A violência psicológica também é uma agressão, também prejudica, fere e mata mulheres todos os dias. E nessas situações, quando estamos vivendo um relacionamento abusivo psicologicamente, é extremamente difícil dar conta de que aquilo é errado, que é uma violência sim e que o outro é um agressor. Ele te ofende? Ele justifica ofensas como "punição" pelo seu comportamento? Ele te humilha? Ele mina sua autoestima? Ele te ameaça? Ele te faz sentir medo? Se a resposta para qualquer uma dessas perguntas for 'sim', significa que sim, seu relacionamento é abusivo e ele é, sim, um agressor.
Você fez muito bem em sair dessa, romper com ele e se afastar. Não se sinta culpada por NADA. Você não 'demorou' a sair da relação por escolha própria, você saiu no tempo que você pôde sair, dentro do seu nível de consciência sobre o que estava acontecendo. E agora, o movimento é continuar pesquisando sobre seus direitos e ajudar outras pessoas, como você está fazendo. Na luta contra o machismo, não podemos deixar de cuidar umas das outras. A competitividade entre mulheres não é 'biológica' como tentam colocar; ela é uma construção cultural, e precisamos quebrá-la para melhorar nossas condições de vida. A nova namorada dele, provavelmente, também será vítima do comportamento abusivo que ele possui. Lembre sempre de que: quando um homem é machista, ele está tirando vantagem disso; quando uma mulher assume uma postura machista, ela não tem vantagem alguma, pelo contrário: ela tolhe a própria liberdade, se restringe e apenas se prejudica.
Apenas mais um comentário: não é responsabilidade das mulheres "consertar" a violência dos homens. Se ele foi violento com você, a culpa não foi, de modo algum, sua. Não foi você quem "não conseguiu" fazer com que ele não fosse violento; foi ELE quem FOI VIOLENTO, essa culpa e essa responsabilidade é absolutamente DELE, e você apenas participou disso na posição de VÍTIMA. Nunca se esqueça disso!