Soneto em cinza

Segundas Lamúrias

Passava o fim de semana trancada em casa, sonhando viagens, sonhando o mundo. 

Certa vez, sonhou Veneza, Roma, Madri e Montevidéu, mas teve que acordar para a realidade da rotina diária. 

Queria ser bicho soltou, sem compromissos com a realidade. Pombo que voa para onde dá na telha, cachorro que vaga sem destino. Queria ser vira-latas e não dar as caras para a humanidade 

Clarice queria se apaixonar por alguém que valesse à pena. 

Queria alguém que se atrasasse nos compromissos por se distrair com o artista de rua, o quadro na parede, a música leviana, a poesia marginal, que conversasse com estranhos apena para ter mais histórias para contar. Que admirasse as cores de uma tempestade como os outros admiravam os caros da moda. 

Alguém que usasse o mesmo tênis sujo e puído por anos; que não se importasse com moda, que falasse de literatura, cinema e arte com a mesma empolgação que suas colegas falavam das futilidades da vida. 

Era infeliz por que tinha que fingir gostar de coisas mundanas, que todo mundo gostava. Eram vazias e prosaicas. 

Certa vez, topou um encontro ás cegas por que uma colega do trabalho disse que era chique. Passou a noite com uma das pessoas mais desagradáveis que conheceu, mas, no outro dia, disse que foi maravilhoso, pois era o que esperavam dela. 

Estava cansada de ser o que esperavam e não ser o que ela era. Queria mesmo ser bicho solto. 

Ia a festas de hipocrisia, antros de beleza e sentia vazia, como as pessoas esperavam que se sentisse. Estava cansada de viver a vida para os outros. 

Decidiu viver do jeito que queria. 

Saiu de casa com o tênis mais velho que tinha, com a cabeleira ruiva desgrenhada e sua camiseta vermelha de comunista derrotado, saia xadrez e bolsa de material reciclado com aspecto de velha. 

Dane-se o mundo. Bukowski é meu pastor e nada me atormentará. 

Começou o curso de fotografia. Comprou uma câmera usada e passou a registrar o mundo com a mesma simplicidade que seus olhos percebiam o mundo. 

Mas ainda podia ouvir as notas daquele soneto em cinza, bem distante, mas ouvia.  Ainda faltava alguma coisa. 

Saiu do emprego. Saiu de casa. Mudou-se para o litoral. 

Ficou de saco cheio de tanta gente fútil dizendo que aquilo ali que era vida, o resto era bobagem. Fugiu para o interior e viveu a vida como queria: plantava o que comia, comia o que queria. Tirava fotografias das pessoas, pintava a realidade com cores vibrantes e vivas. Vendia seus trabalhos por um valor que desse para viver dignamente. 

Montou seu atelier e ficou conhecida. Tornou-se professora e as pessoas vinham de longe para ter aulas com ela. 

Trepava com os artistas que conhecia, com suas alunas de pintura e gozava no céu que sonhava à noite. 

Vivia a vida que lhe fazia feliz. Mas queria mais. E foi atrás de mais.