Bairro de Alvalade

Sobre este bairro, histórias, fotografias e outras coisas.
De Ana Costa Franco.

Plataforma.

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A mãe sempre lhe disse que procurasse um homem com estudos, um moço informado, um rapaz com leituras,  verdade que o Aníbal não tinha sido nada disso mas apanhava amêijoas no Tejo, ilegais é certo, mas nisso Sandra via uma certa poesia que era o que lhe chegava de literatura. Namoraram, viveram juntos ainda que a mãe não lhe aprovasse nada, nem o raio do hobby do Aníbal por mais que as amêijoas aparecessem com frequência nos almoços de Domingo. Ainda durou o enlace, aquilo não era enlace nenhum, dizia-lhe a mãe, que aqui de casa não levas enxoval até que ele te ponha um anel no dedo. Mas um certo dia, Aníbal resolveu fazer um filho a uma caixa do MiniPreço de Corroios, sair de casa e espetar um anel no dedo dessa e a coisa acabou-se,

Eu bem te disse Sandra,

Mas mãe cala-te. Por favor, mas cala-te.

Parece que a criança nasceu o mês passado, uma menina, um nome qualquer com Jotta, talvez Jessica e  quando foi tomar um cafezinho com a Cila, Sandra voltou para casa decidida a encontrar nova companhia. Um homem com estudos, um moço informado, um rapaz com leituras, um desses dos sítios de encontro da net que a Cila anda com um ar muito radioso, vê como tenho a pela esticada do que ele me passa a ferro, Sandra. Parece que é o rapaz é policia, que é ali do Seixal mas está colocado em Barcelos e que chega sempre nas folgas com muito vigor. Cila sorveu a bica, piscou-lhe o olho, deu uma cotovelada, um estalinho com a boca, acenou com um dos pacotinhos de açúcar daqueles que têm frases que começam com Qualquer dia não sei o quê, hoje é o dia e a Sandra começou logo naquela noite a fazer o seu perfil no meetic, um perfil um pouco mais novo, com trinta e dois em vez de trinta e cinco, chamou-se menina do rio, solteira, disponível mas sem pressas, administrativa, atreveu-se a escolher a opção curvas jeitosas na silhueta e com rigor seleccionou as habilitações académicas de quem procurava, um homem de mestrado a doutoramento que já lhe chegava de moluscos clandestinos do Tejo. E na fotografia, a Menina do Rio mostrava-se numa saída de praia, na Fonte da Telha, com os cabelos a taparem-lhe parte do rosto. Depois aguardou nem muito, quase nada, que num instantinho tudo aquilo piscava, de galanteios, pedidos de chat, visitas e emails, tantos que na primeira noite não conversou com ninguém, desconfiada que estava de tanta procura. Mas as noites seguintes fizeram-se de portátil ao colo que até aquece as pernas, em frente à televisão, a ignorar as novelas. Começou a vir conversar até às tantas com um CavaleirodaLua38 atrevido e brejeiro mas que ficou uma alma sensível a terminar o seu mestrado em informática de gestão. O Álvaro que o Cavaleiro tinha nome, de Alvalade, em Lisboa e ao final de uma semana de noites mal dormidas agarrada aquilo contou à Cila que lhe respondeu

Eu bem te disse, Sandra, põe-te mas é a caminho

e no domingo à tarde, um frio imenso, Sandra atravessou o rio de comboio na ponte e desceu na estação do Areeiro ao pé da casa do Álvaro. Estava tanto sol como frio quando se conheceram na plataforma, ele mais baixo do que ela o fazia mas isso nem fazia assim tanto mal não fora a sola compensada dos sapatos da Seaside que ela tinha decidido calçar. Quis logo o Álvaro beber um café numa pastelaria muito bonita, tens de ver Sandra é a Mexicana e lá foram pela Avenida de Roma , pouca gente na rua, Praça de Londres, Guerra Junqueiro, entraram, os empregados à antiga como ele disse, anda, ficamos cá dentro, vem ver, olha o painel de azulejos do Querubim Lapa, lindo, sugeriu-lhe que comesse um éclair, Sandra olhou à volta, as cadeiras de pele de cores diferentes, as paredes revestidas com painéis de madeira, as mesas ocupadas por um grupo de senhoras com laca e cabelos amarelos, noutra um rapaz a estudar rodeado de códigos, mais lá adiante uma mulher corrigia uma pilha de testes. Chegou o éclair e Sandra suspirou baixinho enquanto o Álvaro dizia

Ali, Sandra, já viste os pássaros?

E ela olhou ao fundo, numa das laterais da sala, uma parede de vidro, com uma árvore sem folhas lá dentro e periquitos, muitos periquitos, aquilo era uma pastelaria com uma gaiola gigante, que não era modernista como ele lhe tinha chamado mas escura e o Álvaro sorriu

Que tal o éclair?

Sandra lembrou-se da lojinha de waffles que havia no Colombo, dos corredores largos que esta a hora estariam cheios de luzes e de pessoas e por onde pairava de certeza um persistente cheiro a pipocas que dá tanta vontade de ir ao cinema, sentiu um certo alívio, virou com discrição a cadeira e conseguiu comer o éclair até ao fim sem voltar a olhar para os pássaros. Depois de tantas noites a falarem sobre tudo, percebeu que agora não queria conversar sobre nada. Queria a plataforma para apanhar o comboio que passa na ponte sobre o rio. Queria chegar a casa e mudar o perfil no meetic. Mas antes queria ainda passar pelo Pingo Doce e comprar amêijoas, das vietnamitas congeladas, para as comer em frente à televisão.  

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(fotos: © cc)
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