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Poro Aberto

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Pesquisa, crítica e fotografia sobre música e arte contemporânea. Alguns dos meus textos acadêmicos estão por aí. E, agora, os demais estarão por aqui | Pérola Mathias
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PÉROLA MATHIAS ESCREVE SOBRE LEE PERRY

[Texto originalmente publicado no About Light, em 18/12/2017]

Quando olho a foto que tirei da mão de Lee Scratch Perry segurando o microfone e reparo no formato de suas unhas longas e anéis de pedra ou prata iluminando todos os dedos, sou capaz de percorrer uma memória panorâmica do show que o músico apresentou em 2015 em São Paulo junto com Mad Professor. Uma das coisas marcantes no show foi o brilho que emanava de cada movimento de Perry, vestido com um zilhão de adereços que refletiam as luzes do palco: além dos anéis, as pulseiras em cada braço, os inúmeros colares sobrepostos, o boné também coberto de pedras e brilho, o microfone envolto com um papel estampado com o homem aranha, em que o azul contrastava diretamente com sua barba e cabelo vermelhos, no meio do equilíbrio entre o mic, o isqueiro e o beck. Tudo parecia dançar no ritmo do Disco Devil.

Das fotos de shows que já fiz, as deste dia estão entre as minhas preferidas. Levei a câmera ao show por hobby, porque iria ver duas lendas vivas da música e porque estava começando a fotografar. Precisava treinar. Cheguei de viagem em São Paulo já na parte da tarde e fui direto para o Estúdio, em Pinheiros. Acompanhei o lugar encher e aproveitei para ficar bem na frente do palco. Eu já tinha ido ao Estúdio um dia, mas não me lembrava como era o palco do lugar. Para minha sorte, era um palco pequeno e baixo. Para meu delírio, estava bem iluminado e consegui tirar umas fotos bem de perto, usando minhas lentes fixas, uma 50mm e uma 100mm (na minha câmera croppada, diga-se).

E foi justamente neste show que a importância do detalhe na fotografia se revelou para mim. Porque é ao rever os detalhes que foquei nas fotos que a memória da experiência que vivi naquele dia se reativa. Da mão emana a performance exibida por Perry, que é um ser incansável: eu não aguentei até o fim da apresentação e fui embora com ele ainda no palco, o que deu a sensação de que este dia não foi real, mas uma viagem da minha cabeça. A partir do que vejo hoje na foto, eu recrio, para mim, o canto, os gestos, a dança – os pulinhos jogando as pernas para frente e abaixando os quadris no ritmo do dub. O soul fire man parava e olhava fixamente a plateia, acendia o isqueiro, clamava por fogo e nos convidava para aquele ritual de celebração.

Eu poderia ter passado o show, caso não estivesse fotografando, dançando loucamente – o que eu não deixei de fazer. Mas a câmera me deu uma outra postura, uma outra experiência, porque ela, em geral, media o que vejo e desloca, de alguma maneira, também o meu ouvido, pois acabo ouvindo através do que vejo. E no momento em que me proponho a fotografar um show, não o assisto com os olhos do público, nem com os olhos dos outros músicos que estão no palco. A câmera me direciona o olhar de modo consciente, seja me levando para os detalhes ou para o todo. Quando vou a um show como fotógrafa, exclusivamente para isso (mas nunca impedida de curtir o som, claro), esse lugar intermediário fica ainda mais claro, porque consigo pegar não só o que se passa no palco, mas como a energia entre público e artista é trocada.

É como se eu ficasse suspensa vendo este trânsito de vibes.

/Disco Devil: Pérola Mathias escreve sobre Lee Scratch Perry

Pérola Mathias(@poroaberto) é doutoranda em Sociologia pela UFRJ e escreve no blog poroaberto.tumblr.com.

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Lívia Mattos em Vinha da Ida (Video Clipe) 2017

[Texto originalmente publicado no site Oganpazan em 10/10/2017]

Lívia Mattos traz em Vinha da Ida e no seu trabalho o fruto de uma pesquisa ampla sobre as sonoridades da sanfona, por uma artista completa!

Por Pérola Mathias

A vida é celebrada em inúmeros sentidos e direções no clipe do novo single de Lívia Mattos, Vinha da ida - título e faixa de abertura do disco que será lançado no final deste mês. Dirigido por Cisco Vasques, a câmera parada na sala de uma casa de luz quente vai flagrando a movimentação de uma trupe que ali circula e festeja.

A sanfoneira é a anfitriã, sempre de fole na mão, roupas coloridas, com muitas camadas e texturas, como sua música. Mais do que o ambiente circense, fundamental na identidade de Lívia, com sua ludicidade e alegria, também o surreal ganha espaço. A dança performa a alegria e as contradições que Lívia canta sobre a existência: “Caos de sua ordem não quero/ quero meus nós/ Deixo a ferida aberta sem curativo/ Tranca por dentro a boca bate sem voz”.

O delírio e a poesia, a dor e a beleza de estar vivo, nada está sem suas contradições. Tampouco o som da compositora, que nos desafia neste forró deslocado. Os personagens da festa são vibrantes; a sereia e a grávida são icônicas desta ebulição: é vida nova pulsante, é vida possível, é vida que se inventa.

Lívia Mattos é baiana, sanfoneira, compositora, cantora, circense, socióloga e pesquisadora. Acompanha a banda de Chico César há muitos anos pelo Brasil e pelo mundo. De sua pesquisa como socióloga sobre a música no circo, em breve lançará um registro audiovisual das entrevistas e do material riquíssimo que colheu. E quem já viu Lívia se apresentando ao vivo sabe que não é exagero que ela toca sanfona, se dependura no trapézio, fica no salto, vira de cabeça pra baixo, canta e nunca perde a nota. O som de seu novo disco traz todo o delírio e a poesia deste universo tão único da cantora. E a festa de seu clipe cria essa fluidez em imagens, mesclando beleza, sobriedade e afeto nesta grande celebração.

Como destacado pela revista Rolling Stones, o time que acompanha Lívia é jogo duro: Will Wagner (bateria), Jamberê Cerqueira (tuba e bombardino), Gabriel Rosário (guitarra baiana e cavacolim), Fábio Cunha (pandeiro, torpedo e tamborim), Filipe Massumi (violoncelo e coro), Sérgio Reze (gongos, tambores, splash e coro), Gabi Guedes (atabaques) e Marcelo Pinho (pandeiros, timbales e tamborim).

Aguardamos ansiosamente o disco completo.

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Homesickology

Em julho desse ano saiu álbum Homesickology, primeiro disco do projeto The moon expresso, a banda de um homem só de Ricardo Longo. Ao lançá-lo, ele escreveu um post no Facebook que explica sobre o processo de criação, composição e, finalmente, lançamento:

“Essa semana eu disponibilizei na internet meu disquinho caseiro, composto e gravado nos últimos anos. Dá pra baixar no Bandcamp ou fazer streaming em todas as plataformas mais populares (Spotify, Deezer, iTunes, etc).
A parte instrumental foi feita completamente com um controlador de MIDI miniKORG, que foi o instrumento perfeito para um ex-aspirante a músico independente que enjoou de todo o trabalhão que é ter uma banda e gerir uma “carreira”, mas que não enjoou (e nem vai enjoar) de sentar num cantinho de casa pra compor e gravar daquele velho jeito do-it-yourself.
Aí no meio tem música velha, música nova, música MUITO velha, mas no fim das contas é uma coleção de 11 faixas que eu gosto e me orgulho muito de ter feito. Ao longo dos últimos anos, eu me dediquei, em alguns momentos de horas vagas, quase obsessivamente a cada detalhe das letras e dos arranjos, e apesar de ter aquela história que um autor sempre enxerga algo pra melhorar, decidi que era hora desse parto.
Até pela maneira da gravação, ele é um disco lo-fi e eminentemente eletrônico, mas com uma cacetada de influência de rock, indie, shoegaze, pop, trip-hop e até de trilhas de videogame, que são uma outra obsessão minha. As letras são em inglês, mas tem uma em português escondida ali no meio também.”

O Homesickology é um disco que flui, inteiro, íntegro. É possível perceber toda entrega que há ali e as inúmeras influências sonoras que o costuram. Além do mais, as letras são bem construídas, passando por inúmeros temas. Impossível não dar destaque para “Always sunny on the Red River”, que é de deixar a gente com um sorriso de canto de boca, como se fosse a trilha sonora perfeita para aquele filme divertido que contaria sobre nossas melhores histórias com os amigos, tipo abraçar um coqueiro bêbado na praia da paciência, andar pela fonte do boi em noites de verão ou imitar a Tieta sem voz. Tudo nesse cenário que a gente deixou pra trás (bem que mamãe dizia, “heaven rarely feels like home”),  mas que continua a ser casa, “'cos even when it’s night /it’s always sunny”.

 Seguem os links para escutar:

  1. Bandcamp: https://themoonexpresso.bandcamp.com/releases
  2. (para baixar de graça, quando o site pedir um valor, é só colocar US$ 0)
  3. Spotify: https://open.spotify.com/album/31x3upHoNjkTsznwtGVBRl
  4. Deezer: https://www.deezer.com/br/album/44824811
  5. Direto no site da distribuidora: http://cdbaby.com/cd/expresso2

Sigam o Poro Aberto no instagram: @poroaberto. Tem retrospectiva dos shows do ano em fotos por lá. 

The moon expresso, Homesickology Arte por Juca Oliveira. 

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Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer

Foi publicado pelo site da Revista Amarello o ensaio fotográfico e trecho de uma entrevista que fiz com o músico Bruno Cosentino sobre seu terceiro disco, Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer. Segue o link para acessar o conteúdo da Revista, mas publico abaixo a entrevista completa. Agradeço ao Bruno Cosentino pelo papo e disponibilidade e à Amarello pela abertura. 

Entrevista com Bruno Cosentino | Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer

Bruno, você está lançando agora o seu terceiro disco, que chama Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer. Gostaria de saber de onde vem esse nome, essa ideia e o porquê.

Esse nome vem de alguma coisa que li em algum lugar. Tenho o hábito de anotar ideias ou criar versos a partir das coisas que leio e vejo, vou separando essas anotações mais ou menos por tema e uso para as letras das canções que estou fazendo. Esse verso é de uma canção que se chama “Anti-história”. Eu a compus para o disco de voz e violão que gravei com o Marcos Campello. A ideia nesse disco com o Marcos era negar as minhas maiores verdades. Ainda na época estava lendo o “Ensaio sobre os medos e os fins”, do Viveiros de Castro, que trata da destruição ambiental do planeta. Fazia meses que não chovia e a cidade estava muito seca, então eu estava mergulhado nesse mood apocalíptico, ouvindo uns blues atravessados, como “Devil got my woman”, do Skip James, direto. Aí, como na pré-produção do Corpos eu não estava conseguindo dar unidade para o repertório, peguei a “Anti-história” e ela amarrou tudo, inclusive o verso que dá nome ao disco. É a última frase que se ouve –  corpos são feitos pra encaixar e depois morrer – e é a única canção em que toco violão; ela é diferente de todas as outras, que são mais cheias de instrumentos. Um amigo me disse que achava esse verso libertador. Eu acho bem o contrário, porque fazemos de tudo para nos fundir às pessoas, mas seremos sempre sozinhos, é nossa condição; pra mim isso é devastadoramente triste, porque sou um homem religioso.

Como você vê a questão do corpo – pensando o corpo sobretudo em relação à existência mesmo, à condição do ser, e ao amor?

Tenho a sensação de que a relação amorosa só pode acontecer pelo e com o corpo. Eu agarro muito todos aqueles que amo. Fico me controlando para não ficar pegajoso. Para mim, nenhuma ligação espiritual se dá sem o contato físico. Em inglês, eu adoro o termo body and soul, parece uma coisa só, uma palavra só. Vi outro dia o filme Lion, o menino indiano se perde com cinco anos da mãe e é adotado por uma família australiana; depois de 25 anos, ele volta à sua cidade e reencontra a mãe na rua vindo de um cortejo. Ele pega a mãe, beija, olha, abraça, faz carinho, pega a cabeça da mãe entre as mãos, beija muito. Fiquei pensando nisso. Sem o corpo, essa história de encontro de almas não cola. Outro filme é aquele Moonlight, no final é tão bonito quando o personagem principal diz que nunca foi tocado por um homem. Fica aquela ambiguidade de ser tocado sexualmente e de ser tocado literalmente, porque ele não teve pai e porque o outro homem que representou para ele a figura paterna, embora fosse carinhoso, era muito travado também. Esse filme, que não é lá grandes coisas, passou pra mim essa mensagem urgente para os dias de hoje, que é a necessidade de uma nova masculinidade; os homens, sobretudo os héteros, precisam aprender a ter contato físico com outros homens. Eu sempre fui muito abraçado e beijado pelo meu pai e sou até hoje. Eu também agarro muito meu filho. Tenho certeza de que isso foi muito importante para a descoberta da minha sexualidade.

Seus discos têm vindo mais coerentes, mais redondos, na sonoridade, nos temas poéticos e sonoros e no modo como você tem cantado.

Também acho isso (risos). Tenho aprimorado o gesto. O tempo passa e isso é normal, a gente melhora. O fato de gravar os discos ajuda muito. Sempre senti que a cada disco eu mato alguns fantasmas e aí já quero partir para o próximo. Sinto a gravação de um disco como um espaço de experimentação. Porque vamos testando sonoridades, formações de banda, as composições ficam melhores de um para o outro, porque você vai fazendo cada vez mais, praticando. E o importante é caminhar. Não ficar ruminando um disco. Se não conseguiu fazer exatamente da maneira que pensou, faz no próximo. Desde que li alguém dizendo que o disco é um instantâneo do momento, comecei a acreditar nessa história e fiquei mais relax. Isso não é um elogio do precário, mas uma mudança de postura. Continuo sendo um artista sério (risos). Compreendi também que a dinâmica do nosso tempo, em que colocamos tudo na rede instantaneamente, torna a produção um grande in progress. Então, por que não fazer da evolução do seu trabalho fonográfico um processo de construção junto com o público, exibindo todas as imperfeições? Não publicar hoje em dia não faz muito sentido. E quem terá o protagonismo para escolher o que presta e o que não presta não sou eu mesmo. Desde o Amarelo me sinto também mais conhecedor dos meus temas – e isso só mesmo com o tempo passando e com as coisas que acontecem na nossa vida. E para mim as coisas que vivo são as mais transformadoras; me recolocam no mundo de uma maneira mais lúcida, concreta, parece que minha existência cria raízes, não sei bem explicar. Mas é como se minha vida por senti-la ligada de maneira profunda a outras vidas, redimensionasse tudo. E aí entendo melhor meu lugar no mundo. Com o canto é a mesma coisa. Tudo misturado com a reflexão sobre a música mesmo. No Amarelo, eu senti pela primeira vez que estava escrevendo coisas que realmente eu sentia. Antes eu fazia letras ou musicava um poema e tinha completa identificação com aquilo, entendia o que estava sendo dito e o que eu cantava, mas a partir de um certo momento, ultrapassou muito o âmbito da identificação. Aquilo que eu cantava se tornou eu mesmo, a minha própria experiência. Sem dúvida tudo se renovou, com uma aparência mais frágil e precária talvez, mas era eu: não entendia só, eu sentia. E sentir é muito diferente de entender, é mais! O corpo está aí quando a gente não consegue explicar. E por isso tenho a impressão de que hoje quando não sou capaz de explicar alguma coisa, essa coisa é mais verdadeira, porque, apesar do não entendimento, a força do sentimento é inegável.

Fiz este comentário porque enxergo que algumas questões se repetem – mas se repetem como questões, não como ideias prontas. Além do corpo, também o sexo e o amor – como pecado e como prazer, um jogo muito fino entre as ambiguidades desses termos, que são parte das nossas grandes buscas filosóficas e humanas. Então, indo faixa a faixa aqui, o que você diria sobre a frase que abre É claro que eu queria: “que hacer con el cuerpo”?

Esse é um verso de um poeta colombiano, Carlos Milán Patiño, e que tinha usado assim de fundo, lido por uma amiga, a Aimée, na canção em parceria com ele, Milagros de um dios menor, que gravei no meu primeiro disco, com a banda Isadora. O verso diz: “¿como siempre, la duda es que hacer com el cuerpo?”. O engraçado é que no poema, ele é literal, acontece um assassinato e aí vem a pergunta. Mas a Aimée gravou esse trecho fora do contexto e assim sozinho ele ganha outra dimensão; uma pergunta muito mais profunda. Enfim, lembrei desse verso, que acho deslumbrante, e o coloquei abrindo o disco.

É verdade, as questões se repetem sempre, não as respostas, espero que continue assim, porque conforme vamos envelhecendo, vamos ficando mais seguros e, dependendo, pode ser a derrocada. Percebi depois essa mirada desiludida sobre o sexo. Eu não planejei nada. Esse disco inclusive tive que gravar para o edital que ganhei. Mas ele me revelou algumas coisas que não suspeitava. Uma delas é essa, que está em “a carne é triste”, “todo bicho depois do coito fica triste” (que é uma corruptela da frase de um médico da Grécia antiga) e o próprio nome do disco. Na turnê do Amarelo, passei por uma situação que me fez pensar sobre isso. Fui fazer um show em Belém, que é uma das minhas cidades preferidas no mundo, que tem uma energia que é muito dela. E lá também, me lembro da primeira vez que eu tinha ido, uns dois anos antes, rola uma tensão sexual no ar, uma permissividade muito natural nas pessoas, achei. Fiquei encantado com isso. Mas dessa segunda vez, um menino que eu não conhecia foi tirar fotos do meu show e depois me procurou no Facebook para me enviar as fotos. Começamos a trocar ideia, fui ver as fotos dele, era um menino muito novo, tipo saindo do colégio, e achei as fotos de uma beleza tão grande, retratavam o cotidiano dele e dos amigos no que parecia ser a periferia de Belém. E tinha uma de uma festa na piscina com as meninas extremamente sexualizadas, muito novinhas, e esse menino, que tinha um lance – que parece ser de uma geração mais nova, que não dava pra saber se curtia homem, mulher, os dois, ou talvez por isso não ser nem mais uma questão para eles –, sua aparência também era andrógina... Mas as fotos eram realmente muito bonitas, com muita sinceridade e uma forte intuição formal, além de um apelo de registro antropológico, tipo juventude anos 10 da perifa de Belém. Minha impressão das cenas não foi boa. Soma-se a ela que foi nessa viagem que passei o dia mais triste da minha vida (uma ironia, já que numa cidade que amo tanto). Fiquei andando pelo centro esperando meu voo que era de madrugada e nunca me senti tão sozinho na vida. Estava no norte do país, com saudade de casa e com medo de morrer no avião, foi desesperador. E aquele vento batendo forte no rio, os urubus planando em cima do forte e dos barcos de pescadores. E era domingo, tudo agravava minha situação. E foi nesse contexto – e me dou conta agora – de permissividade sexual de um lado e saudade de casa do outro, que percebi o quanto o prazer sexual pode ser triste, utilitário, fetichizado nas redes sociais, uma espécie de interiorização da lógica mercantil para o sexo, quando ele é e deve ser uma coisa ao mesmo tempo mundana e sagrada, como são os rituais. Porque é afinal o encontro entre duas pessoas. Acima de tudo duas pessoas, não dois pedaços de carne. Dessa forma instrumentalizada, o sexo fica esvaziado de erotismo, viramos uns animais a serviço do capitalismo vulgar; eu sou muito civilizado (risos).

Nessa letra, É claro que eu queria, tem muitos elementos dessa provocação geral que tentei colocar. Porque ali o sexo está posto como o efêmero, o fugaz, como o instante. E o instante, o que ele é? Pensando que você vai cantar em Cara que o momento, como um acontecimento único de um presente, é um deus. Um deus que baliza outro deus, o Desejo – e aqui em maiúscula porque o desejo está intrínseco a esses grandes temas que estou tentando colocar como suas questões, presentes na sua composição, na sua música, no seu som.

O desejo é a grande questão. Eu disse que sou religioso. E se é assim, sou pagão e politeísta. E meus deuses são criados por mim, pelas coisas que acho que não consigo reger. Normalmente – deve ser coisa da posição dos astros no momento do meu nascimento – , acho que posso ter controle sobre muita coisa. Mas como não sou ingênuo, sei que não é assim. E sobre essas coisas que não consigo controlar, a tudo o que desconheço, atribuo um valor sobrenatural. Sobre o momento, fiquei pensando muito, dependendo, coisas podem acontecer e coisas podem não acontecer, independentemente às vezes da nossa vontade. Acho isso incrível. E é claro que o desejo é levado pelos enleios do momento, como você disse, está balizado por ele. Fico me perguntando: e se não seguirmos nossos desejos? E se seguirmos nossos desejos? Que diferença isso vai fazer na minha vida e na vida das pessoas que de alguma forma são afetadas por mim? E a minha resposta agora é que devemos sempre que possível realizar nossos desejos, claro, regido pelos deuses, sem forçar a mão, mas segui-los. Assim, acredito que seremos pessoas melhores, realizados ou frustrados, conheceremos mais a respeito de nós mesmos. Tudo é uma questão do que fazer com nossa liberdade. Eu prezo muito pela minha e busco consequentemente fazer uso dela, porque acho que é o único meio que tenho para o autoconhecimento. Aceitar ou não aceitar as coisas que me são oferecidas para entendê-las, saber quem eu sou no mundo, o que estou fazendo aqui. Por isso a questão do desejo é importante, nos constitui como gente viva. Como recusá-lo em nome da crença em uma moral sem o conflito ético? Pra mim, que tenho dificuldade em aceitar alguma vida além da que estou vivendo aqui agora, não faz muito sentido.

Ainda em É claro que eu queria, existe uma relação entre o particular, o pessoal e o concreto com o universal. Quando você respira fundo depois de cantar o primeiro verso, “é claro que eu queria você só pra mim” e depois exala cantando “mas não, não podia pedir tanto / nosso lance era só sexo, eu sabia”, é como interpretar um amante enfrentando conflitos internos, numa relação do amor e culpa por realizá-lo, por ter evidências dele, como o cheiro. E tem a fragilidade… Você acredita na diferença de percepção do homem e da mulher sobre esse universo?

Eu acredito muito na diferença entre homens e mulheres e acredito ainda mais na diferença entre uma pessoa e outra. Desde que me casei e passei a dividir a vida diária com uma mulher esse tema faz parte das minhas reflexões. Mais recentemente, conversando com amigas feministas sobre o assunto, tenho enxergado menos as diferenças e mais as semelhanças.

E por que dentro disso tudo surge, com força e suavidade, o coro que canta o verso “não sou eu que vai lhe ver dormir”? Ver o outro dormir é um momento de ternura, de se perceber acompanhado vigiando esse momento intransponível do outro, o sono. Entendi que entre a efemeridade do prazer e a possibilidade de duração do amor, o casal da letra zomba de deus e acaba quase que como sob o castigo desse.

Eu acho sim que ver o outro dormir pode ser um momento de muito amor. Esse verso é triste. Não penso em castigo, porque não penso, não considero o castigo divino como possibilidade, embora faça todo sentido você dizer isso pra quem acredita, mas para mim é simplesmente triste, porque a vida nos impõe restrições a todo momento. É assim, a gente pode tentar realizar nossas vontades, mas algumas questões permanecem sem solução. Aí entra a criação. Inclusive a criação da nossa vida. Pra mim, que busco entender as relações com a maior lucidez que me é dada ter, reconhecendo o que há de bom e de ruim, de alegria e de dor. O amor assim, que encara a realidade, deixa de ser idealização para se tornar criação, porque é claro que sempre a imaginação entra em jogo e projetamos situações, criamos imagens das pessoas para nós. Mas, se olhamos de frente, sem subterfúgios, a relação amorosa deve vir a ser o trabalho de criação, um aprendizado ético e moral, criação de novas formas de amar, inventadas a dois, a três ou a quantos se quiser.

Em Sou frágil, tudo se complexifica ainda mais. A música é mais direta do que É claro que eu queria e Meu bem, mas coloca essa linha homem – bicho – mulher. Você sempre fala do seu interesse no mito do andrógino. Por que esse tema te interessa?

Me interessa porque, como eu disse, desde que me casei e passei a conviver diariamente com uma mulher, passei a pensar muito na diferença entre homens e mulheres. Eu mudei bastante a partir dessa experiência. Como diz Rilke, para uma pessoa que soube nutrir sua solidão e estar bem sozinha no mundo, quando encontra alguém com quem por escolha própria quer ficar junto, um mundo novo é criado em nós mesmos a partir da outra pessoa. Eu tive essa sensação e depois descobri essa coisa do Rilke. Achei impressionante. Me tornei mais eu por causa de outra pessoa. Ou seja, até certo ponto, abrindo mão de coisas que eu fazia ou de um jeito que eu era antes, só que por escolha própria (ou por amor), acaba sendo uma ação também libertadora e de aceitação da outra pessoa. Foi aí que percebi uma coisa que descobri a resposta recentemente: percebi que a partir da vida a dois eu tinha passado a ser eu sozinho num modo religioso, no sentido de não estar mais ao sabor somente das minhas vontades, mas de ter que considerar uma outra pessoa, que por mais próxima que seja de você, sempre será outra pessoa, insondável. Então, essa obrigação voluntária que é a relação amorosa se torna um modo de viver religioso a partir da célula mínima do casal. Eu não tenho, ninguém tem, como dar amor a todas as pessoas do mundo nesse nível. Por mais que tenhamos compaixão e um sentimento de fraternidade pela humanidade, é um sentimento impessoal, não conhecemos essas pessoas. O casamento me revelou isso, como se eu estivesse fazendo a minha parte, porque estou fazendo por alguém. E daí a razão para que cada pessoa ache o seu par ou os seus amores, a quem escolherão entregar parte da sua vida.

Recentemente li um texto do Agamben e ele escreve a minha resposta, ele diz que, quando amamos alguém, como que declaramos nossa fé na espécie humana. Então, o mito do andrógino me interessa por causa disso. No início, diz o discurso, havia os andróginos, ao mesmo tempo homens e mulheres, de duas cabeças, quatro braços e pernas etc. Mas como castigo, porque quiseram desafiar os deuses, Zeus os cortou em dois e a partir daí viveram sempre a buscar a parte perdida, “as metades da laranja” (risos). No início, antes da criação, tudo é um todo indistinto, em que os opostos estão conciliados, uma vez da criação acontece a diferenciação. É também assim, a seu modo, na cena da queda de Adão e Eva – também foram desobedientes, graças a deus. A relação com os mitos, pra mim, é essa, eles explicam um sentimento que sempre tive dessa nostalgia da unidade primeira.

Em que medida, nessa visão do humano em relação ao humano e à natureza, se relacionam a dor e o prazer?

Em tudo há dor e prazer, há deus e o diabo. O meu disco todo foi regido por essa ideia, a de encarar o sofrimento sem desviar os olhos, a dor, as energias atravessadas que nos põe em crise. Daí o candomblé e a figura de Exú – o primeiro nascido, filho da mãe e do pai primordiais, andrógino, elemento dinâmico, sexual, individualizador – me ensinaram muita coisa. E tenho me permitido olhar cara-a-cara o horroroso e me sinto mais conectado assim. O horror é o medo e a maravilha. Temos repulsa e somos atraídos por ele ao mesmo tempo.

O que é a morte pra você? Você pensa nela num sentido literal? Ou mais num sentido figurado?

Já pensei muito na morte num sentido literal, não penso mais, porque não quero. Me faz muito mal e não serve pra nada. Me deixa impotente. Isso aconteceu quando estava num período de ócio não criativo. Me dei conta de que a melhor solução para não pensar na morte desse jeito é viver. E viver, quero dizer, viver a vida prática, aparentemente superficial, mas saboreando cada momento. E esse pensamento de morte, quando me vem hoje, ele já vem transfigurado numa percepção aguda da alegria do momento muitas vezes no instante mesmo em que os estou vivendo. Desde os acontecimentos mais banais aos mais importantes. Fico tipo um velho no fim da vida.

Sentir um prazer extremo é quase vivenciar a morte, é estar pendurado à beira de um abismo das sensações?

Uso recorrentemente essa metáfora da morte como o orgasmo, que é um lugar comum, mas, pensando agora, nunca tive essa sensação de morte no gozo. Morte, digo, como deve ser a de verdade. Não sinto elas da mesma forma, vou parar de usar (risos). Viver um prazer extremo não sei então o que pode significar, talvez uma necessidade de ser absolutamente naquele instante, não saber mais de nada, esquecer quem somos. Mas isso acontece também comigo, e aí não são extremos de prazer nesse sentido, quando estou no palco ou andando na rua distraído, pode acontecer em rituais religiosos, na meditação.

Você acha que depositar uma quantidade de prazer que vai aumentando e se acumulando como energia é ter uma morte?

Não, acho que é vida

A carne pode ser triste? Aqui, de novo, penso numa ideia potente sobre a presença do corpo no mundo.

A carne pode ser triste e pode ser alegre. Acho que ela é os dois. A carne pode ser triste quando é só carne, é só o nosso corpo destituído de todo o resto que se chama espírito, alma, seja lá o que isso for. A carne pode ser alegre quando todos esses elementos estão juntos, num todo indistinto, somático, quando através do corpo estamos nos reunindo com a gente e com os outros em “um outro nível de vínculo”, para citar o nosso amado Caetano.

Entendi que você meio que nomeia, em Sou frágil, os extremos da sensação do prazer e os momentos concretos dessa sensação: riso, grito, mordida, uivo. O que precede, o que acompanha, o que finda, o que sobra no corpo de sensação, depois do prazer/ realização do desejo. O que fazer com isso? – é a pergunta inicial do disco. Como reviver desse momento? “a carne é triste e o amor/ um menino brincando na minha barriga”

Reviver o gozo, só gozando de novo. Como isso fica na gente depois do gozo? Acho que na sensação que marca a memória do corpo, nos reencontros que, também por causa desses extremos de prazer, são renovados. Fica numa criança que pode nascer. Aponta para a duração, seja ela uma criança ou o início de uma relação amorosa.

Você regrava uma canção de Caetano Veloso, Tem que ser você, do Outras Palavras, e que é uma letra que traz uma espécie de maturidade de um homem. Uma certeza, uma escolha consciente, que é a escolha de poder escolher, que talvez sacrifique o “sofrimento” (assim, entre aspas) do desejo que expande/explode para todos os lados. E nessa canção Deus também aparece.

Deus está em tudo (risos). Caetano canta essa canção com voz bem grave, tipo machão. Eu, como tinha percebido essa confusão de homem cantando no eu-lírico feminino que já estava em várias músicas do disco, decidi cantá-la no falsete, depois dobrei uma oitava acima para ficar ainda mais ambíguo. E muitas pessoas dizem que minha voz é feminina. Na verdade, ela fica mais num registro entre um e outro, nem Ney, nem Tim Maia, um registro andrógino.

“E homens, o amor-mentira pode ser tão bonito/ mas o céu do meu sexo/ tem que ser você” – o que você interpreta aqui? E o céu, como fica, como fim, o céu como absoluto, o céu como que é maior ou o ápice?

Me soa como sendo o céu o absoluto. Nessa frase, “homens o amor-mentira pode ser tão bonito”, eu ouço ecos do ensaio do Thomas Mann sobre o casamento em transição e que sei que Caetano gosta porque ele usa no filme dele, o Cinema Falado. É a tendência à estetização do amor homoerótico, uma vez que não tem a finalidade da procriação. Ele chama aqui “amor-mentira pode ser tão bonito”. É bonito, não é mentira, ele sabe disso, é porque a letra é toda querendo marcar a posição do macho, é meio caricata, de propósito, tanto é que ele canta com aquela voz grave.

Você acredita em Deus?

Acredito na criação. Acredito nas pessoas. E que elas criam deus para que ele as possa ter criado.

Qual a influência de Caetano, poesia e canto, nesse seu momento pessoal e musical? Momento em que você parece afirmar uma direção, uma personalidade e uma questão no seu trabalho. Digo isso porque está explorando desde Amarelo o amor e suas sinergias com o corpo, o etéreo e o concreto.

Então, minhas maiores influências, as maiores, porque foram muitas, mas as maiores são Djavan, desde que me entendo por gente, e, na juventude, Caetano. Passei muito tempo sofrendo essa angústia da influência, mas agora não estou nem aí para ela. Minha insegurança passou. Não fecho mais a porta quando eles vem me visitar. Os versos do Caetano povoam minha cabeça e as coisas do Djavan estão tão entranhadas que já nem sabia mais onde estavam, mas como voltei a ouvi-lo, começo a reconhecer tudo com alegria renovada. Ouvi desde pequeno que deveria ser original – continuo achando esse um valor importante para o artista, fundamental mesmo, mas não mais como um imperativo, quase uma impostura que chegou pra gente nesses termos talvez da ideia do “novo” das vanguardas, e que pode se tornar uma prisão, nos deixar angustiados, querendo sacar uma originalidade que está dentro da gente, às vezes com um esforço intelectual. Sendo que essa originalidade só pode ser buscada fora, indo ao encontro dos outros, imitando os artistas que a gente ama, se tornando um pouco eles. Quanto mais o artista fizer isso, mais vai apontar uma direção singular, e não com gestos fáceis, de “querer ser diferente”, disso eu tenho certeza. A originalidade não é alguma coisa fácil de ser conquistada, precisa de esforço, é um trabalho de vida, existencial. Tudo é a mesma coisa. A roupa que a gente usa, o jeito de cantar e de compor. E quem não canta ou compõe, exibe seu estilo conversando, andando, o estilo está em tudo, não precisa ser artista para ter um.

Fala um pouco dos seus parceiros de composição e de banda, o Exército de bebês. Nesse disco de novo você grava outra música do Luís Capucho e tem uma parceria com o Pedro Carneiro, com quem você já se apresentou duas vezes com o show Três Vocês.

Eu gravei o meu disco anterior, Babies, com o Exército de Bebês. Eu sou fã dos meninos. Nos damos muito bem musicalmente, o som deles é o que eu curto. Além disso, são educados, gentis e músicos super talentosos e sérios. Assim, estou bem amparado (risos). E o que aconteceu foi que mal a gente fez o show de lançamento do Babies no Sesc Copacabana, em maio do ano passado, uma semana depois já começamos a ensaiar as canções pra gravação do Corpos, porque o edital dava um prazo pra gente cumprir. Então, foi natural que seguíssemos juntos nesse disco agora também.

O Capucho é uma grande influência recente. Me foi apresentado – a música dele –  pelo nosso amigo Marcos Lacerda e depois o convidei para participar do meu show no Teatro Café Pequeno. Ficamos muito próximos. Estamos fazendo sempre alguma coisa juntos. Eu tenho vontade de gravar quase todas as músicas dele. Um amigo me sugeriu gravar um disco só com canções dele, mas em todo o disco tenho uma dele, então não preciso. Eu regravei agora Eu quero ser sua mãe, deslumbrante. Só tenho a dizer que é tudo lindo, é o compositor contemporâneo mais foda pra mim. Me emociono muito com as canções dele e com ele cantando. Ele cria um universo próprio, quando a gente entra ali é incrível. As letras e as melodias, tudo de uma sinceridade crua e muito comovente. Eu o apresentei ao Pedro, que teve essa mesma impressão forte que eu e eles se tornaram amigos também. Agora fazemos esse show juntos, o Três vocês, que foi pensado pela Isabela Bosi.

O Pedro também gravou e co-produziu o Babies. Acho ele um puta compositor, já achava antes de conhecê-lo pessoalmente, é uma pessoa com quem me sinto bem e quero ter sempre perto de mim. Fizemos essa primeira parceria, que se chama Obs., eu escrevi a letra. Disse a ele o que estava pensando com aquilo tudo e ele musicou fazendo algumas alterações na letra para caber melhor na ideia musical. E, pensando agora, ela conversa com Eu quero ser sua mãe, do Capucho. Basicamente foi uma ideia obsessiva em que entrei pensando em como o homem que sente desejo sexual por mulher quer entrar pelo buraco de onde saiu. Fiquei com essa ideia em loop girando na cabeça, não entendia o porquê dessa circularidade, querer morrer onde se nasce, querer entrar por onde saiu, não fazia sentido. A falta de sentido e a circularidade estavam me dando vertigem. Estava lendo também o Mircea Eliade, que descreve alguns ritos de androginização em religiões orientais e misturado a isso estava ouvindo James Blake, que eu adoro, mas que me encheu o saco aqueles loops todos, aquela repetição de máquina, e lembro de anotar no meu caderno, num momento de desespero, que odiava música eletrônica. Essa coisa de ficar ali repetindo exaustivamente. Nenhum dos meus discos a partir do Amarelo têm loops, peguei aversão, foi também por causa disso. Estou mais para o orgânico, para o corpo, como temos falado.

Fala de Cara, que é uma música totalmente pra cima, ainda que a letra seja mais uma elucubração sobre o amor e seus desdobramentos esotéricos e morais. A escrita tem uns lances de jogo de linguagem.

É uma letra bem poeminha mesmo. Tem umas repetições de sílabas, que surgiram porque tinha a letra escrita e quis encaixá-la num groove que já existia desde a época em que eu tocava com a Isadora. Aí peguei o arranjo instrumental da gravação de um ensaio que tinha no youtube e fiz a letra em cima; depois, passei pros meninos do Exército de Bebês. E aí, nesse caso, que é pra ser dançante, interessa muito mais o lance sonoro, a repetição das sílabas dão ritmo pra música. Por isso rolou assim. É uma cantada mal sucedida que se transformou em lição de moral despeitada.  

Por fim, vem Anti-história, a canção que tem o verso que dá nome ao disco. E que tem uma batida no violão que acho que é muito característica sua (risos). E com essa canção penso muitas coisas, como que de um lado tem o universal, na humanidade; o particular, o seu filho que vai nascer; e no meio desses dois polos a História, a democracia, sua decadência e seus sujeitos.

É, essa coisa de marcar bem o ritmo dando um peteleco no violão fui fazendo na turnê do Amarelo, porque foi toda voz e violão, e como não sou instrumentista, sou acompanhador de mim mesmo, fui pesquisando uma maneira de tocar mais livre, um gesto muito influenciado pelo guitarrista Marcos Campello, meu amigo e de quem sou fã. Hoje sinto que essa maneira de tocar também me ajuda a compor, porque define balizas rítmicas entre as quais posso ir indo num flow jogando com as síncopes da melodia. Quando eu estava gravando o Amarelo saquei que esse era o lance pra mim (ouvindo Marvin Gaye), o ritmo bem marcado, a palavra e a melodia; e isso é o rap, é o soul, a black music de maneira geral; é também João Gilberto e Nana Caymmi, minha musa. Mas sobre a letra, como falei, estava negando tudo. E a democracia, ela não tem um valor absoluto. Quando as pessoas falam em democracia, elas acham que se trata de uma coisa boa em si. E é com esse argumento que os Estados Unidos justificam os assassinatos no Oriente Médio. A democracia pode ser ruim. Já sabiam disso Aristóteles, Tocqueville, Schumpeter e tantos outros. A nossa democracia, do jeito que acontece, pelo voto único num representante de quatro em quatro anos, é quase a mesma coisa que nada, nós não temos poder nenhum. Sem falar na falta de representatividade e de mecanismos de controle. Eu acredito na democracia descentralizada e participativa, com poder de deliberação. Isso é totalmente possível, mas não interessa, porque o poder político está capturado pelos partidos. Foda-se, odeio esse assunto. Quis dizer que a nossa democracia cria essas figuras abomináveis mesmo. E que o amor é a anti-história, no caso, o momento de suspensão do tempo, do gozo, do sexo, da fusão extática dos corpos.

Agora tenho umas perguntas para você inspiradas nas entrevistas que a Clarice Lispector fez, sobretudo na que ela fez com Vinícius de Moraes

1.  Qual a coisa mais importante do mundo?

As pessoas que amo.

2.  Você ama o amor? Você ama mais o amor ou mais o corpo, veículo e ponto receptor do amor?

Eu detesto o amor. Eu amo as pessoas que amo.

3.  Como seu trabalho artístico se cruza com seu trabalho acadêmico? Você acha que eles mais se complementam, no sentido de que as pesquisas de uma e do outro constituem sua obra? Ou são coisas independentes, que em um você aprende, no outro realiza; ou em um você “trabalha”, no outro você se expressa? Essas diferenças existem pra você?

Descobri estudando o amor que ele não pode ser estudado. Tive uma aula sobre o sagrado na literatura, uma aula ótima, em que lemos vários filósofos contemporâneos, sobretudo franceses, que andam escrevendo sobre o amor. Sem querer diminuir os trabalhos deles, muito pelo contrário, gosto muito de alguns, me senti um pouco ridículo estudando um tema que deve ser e só dá pra ser entendido/sentido na prática. Sem a prática, esses livros não fazem sentido. Assim como tudo o que leio. Se não encontro ressonância na minha vida, aquilo é nada pra mim. Por isso tenho que declarar meu amor pela Hannah Arendt, essa mulher incrível, que me ensina tanto a viver.

4.  Clarice pergunta a Vinícius qual artista de cinema ele amaria. Queria te perguntar qual artista (de maneira geral, poeta, escritor, músico, ator, diretor, etc.) você amaria? Ou ama.

Se for a pessoa, eu não amo ninguém. Se for a obra, eu amo muitos: Caetano Veloso, Luiza Neto Jorge, Antonioni. Se for uma personagem, eu amaria a Willie, papel da Hanna Schygulla no filme Lili Marleen, do Fassbinder.

5.   Como você pensa (sua) música?

Eu penso minha música como uma parte de mim.

6.  Se você tivesse que falar de uma característica sua, qual seria?

Li no meu mapa astral que não gosto que me decifrem; eu concordei e parei de ler.

7.  Você é uma pessoa alegre, triste, sozinho, completo...?

Sou alegre, triste, sozinho, completo.

8.  Qual seu maior desejo com sua música? Você canaliza ela numa direção ou ela flui em/com você? O que é uma canção ou uma música perfeita pra você?

Meu maior desejo é que as pessoas ouçam as minhas músicas. Eu faço para elas a partir de mim. Não é só pra mim, nem só pra elas, tem que ter o elo. Uma canção perfeita é aquela que ouço e fico emocionado e fico buscando algum defeito e não encontro. Ela fica vibrando uma aura de mistério.

9.  Clarice pergunta pra Vinicius: “Você se sente feliz?”. Como você vê a felicidade? Como um estado, como um momento, como um alvo (por exemplo, quando dizem “meu objetivo é ser feliz”), como um equilíbrio precário (“precisa que haja vento sem parar”) ou como diz enigmaticamente Badiou, como “interrupção da finitude”?

É como aquela canção perfeita do Odair José, “Felicidade não existe. O que existe na vida são momentos felizes”. Entre a dor e o prazer, a gente está sempre buscando. Temos que fazer por ela.

10. Uma música do Djavan, qual?

Doidice.

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Com quem você vem?

                                                                       “Vai dizer que não é forte essa prece                                     de cantar e tocar e dançar junto”                                                                        Da janela, Luiza Brina                                                                                                                          “Apesar das paredes                                    Nossa voz avança                                    Nossa dança                                    Faz-se em praça aberta                                    Braço forte, peito alerta”                                                                       Nós ao vivo, Daniel Medina
Um encontro de delicadezas materializadas em canções, este foi o resultado do show que reuniu Daniel Medina, Pedro Carneiro (Vovô Bebê), Luiza Brina e Igor Caracas. Sem se conhecerem pessoalmente, o projeto “Com quem você vem?” propôs a Daniel Medina e Pedro Carneiro que tocassem juntos e convidassem Luiza Brina e Igor Caracas. Em dois dias eles dialogaram pessoal e musicalmente de forma tão intensa a levantar o show que mesclou músicas autorais dos quatro, em versões e intervenções novas.

Daniel Medina lançará em julho seu primeiro disco; Luiza Brina recém-lançou o seu segundo, “Tão tá” – um disco-objeto de design primoroso; Pedro Carneiro lançou o “Coração Cabeção” em março, além de seus projetos de produção; e Igor Caracas tem tocado com Saulo Duarte e Maria Ó, gravou com Laya, Oto Gris, Daniel Groove (e muitos outros) e está co-produzindo o disco de Daniel.

Daniel e Igor são cearenses. Luiza, mineira. E Pedro é carioca. Talvez as diferenças que caracterizam cada um dos quatro músicos seja o ponto comum do diálogo ocorrido entre eles. Cada um canta sua terra de modo sutil – sem bairrismo, melancolia ou apego às raízes. Cantam porque são sensíveis às realidades. E aí – mas não só, creio eu - está o cerne das canções: nas letras com índios, bois, balanços praieiros, moleques e suas gírias; e nos sons com experimentalismo, toadas e tópicos folclóricos bem arranjados.

As canções de Daniel Medina exalam a força de sua presença e postura aberta. O amor está o tempo todo presente ali, ora assumindo-se canção - o amor pela arte e seu caminho -, ora nos pormenores do afeto. As canções de Pedro são pontuais como crônicas citadinas, mas de filosofias existencialistas inusitadas. Como nos versos “a verdade não passa de um ponto de vista/com status de palavra-resposta/e o povo gosta de ser bem informado/ prisão da definição”. Pedro tem um quê da inocência madura do contador de histórias. Não tão rasgado quanto Daniel, mas com a expressividade minimalista presente no levantar de sobrancelhas sob os óculos ou no posicionar dos pés enquanto toca.

Na apresentação, os músicos se dividiram entre os quatro cantos da sala da Casa Líquida, formando um círculo irregular. O posicionamento fez com que o público se deslocasse ou se alocasse entre eles, sendo estimulado a olhar para ângulos diferentes, ver e ouvir os instrumentos separadamente. E também a passar por entre, ou olhar de fora. Os músicos trocaram as posições, os instrumentos, mas nunca chamando lideranças para si. Foi curioso ver Luiza na percussão. Ou Daniel na guitarra. Ou Igor no violão. Ou Pedro no baixo. Não que eles não pudessem, Luiza e Pedro, sobretudo, são multi-instrumentistas. Mas foi mais uma forma de ter um deslocamento dentro da experiência proposta pelo projeto. O “Com quem você vem?” queria ser algo diferente do mero show com participações.

A ideia inicial deste projeto foi promover encontros entre artistas que na correria do dia a dia e no vício dos movimentos talvez não se encontrassem, mas que pudessem fazer desse encontro um momento único para a criação. O resultado é, assim, uma surpresa tanto para os artistas, quanto para os que os assistem, de forma que, neste último passo, todos acabam fazendo parte do ciclo. É uma aposta no encontro como motor da vida. A abertura da Casa Líquida ao projeto foi fundamental. A Casa constitui o projeto performático de Julia Feldens, cuja proposta é acolher artistas em processo de criação, promovendo em seu espaço um fluxo de afetos.

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Novas frentes e novas mídias

Depois de abrir o Poro Aberto, comecei a contribuir com outros projetos que abordam música, dança, performance e artes visuais. Um deles, que ainda não falei aqui, é a Editora Visual Leviatã, com quem tenho contribuído tanto com textos, quanto com imagens. 

O principal projeto que embarquei com a Leviatã é o Duplos, uma série de apresentações/encontros de improviso entre música e dança, pensado pelo músico Thiago Salas Gomes e pela bailarina Talita Florêncio. As fotos da primeira edição do projeto estão no ar no site da Leviatã, é só visitar clicando aqui

O Duplos já tem extrapolado a coisa de edição e formato. E projetos diversos envolvendo fotografia têm aparecido. Por isto, criei uma conta no instagram para que o Poro Aberto não fique desatualizado. Siga-nos: @poroaberto​ . 

Além do Duplos, no site da Leviatã tem ainda mais duas colaborações minhas: as fotos do processo de criação do clipe da música Dois Fachos, da banda Oto Gris, dirigido pelo Iago Mati; e as fotos do encontro entre a dançarina Marina Tenório e o músico Thomas Rohrer. Tá tudo lá. 

E meu flickr também resiste, sendo um flickr ainda, coitado, com meu nome. risos https://www.flickr.com/photos/perolamathias

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Estamos Noutra, de Paulinho da Viola e Elton Medeiros, uma lúcida canção de amor

É difícil falar de amor com algum traço de razão, sobretudo quando se trata de um amor que chega ao fim. Acredito que temos dificuldade de lidar com a finitude dos sentimentos, mais do que das coisas. A ideia do apego tem sido sumamente rechaçada hoje pelas desconstruções que fazemos do amor romântico – este que, muitas vezes, é mais possessivo e obsessivo do que de fato romântico, no sentido de apaixonado, nobre, lírico, etc.

Em Estamos noutra, canção de Paulinho da Viola e Elton Medeiros, os compositores cantam com leveza e maestria sobre o tema. Dizendo que, nas relações que nos envolvemos, nem sempre é preciso viver a dor do fim e tentar botar a qualquer custo em pratos limpos o que se passou. O mote inicial da letra da canção é o cansaço de uma luta inútil que, caso não cesse, provavelmente terminará apenas com perdedores.

Cansei dessa luta o tempo é tão curto pra tentar de novo

Está desenhado aí uma relação ou desgastada, ou apenas esgotada. Nem sempre é preciso um motivo objetivo para que isso aconteça. O narrador dá pistas de que já tentava, conscientemente, procurar uma via que pudesse fazer o cotidiano do carinho ser revivido.

Não há mais ternura E sei quanto custa te olhar no rosto Não faz mais sentido E faço um pedido Não quero sentir em tua boca Esse beijo frio é caso perdido Estamos noutra

Às vezes a paixão acaba, às vezes o bem querer acaba, às vezes o amor vira outra coisa. Noutras vezes, acaba-se tudo, simplesmente. E há outras ainda em que perdura o rancor e o ressentimento.

Quantas palavras amargas Prefiro o silêncio sem nada pedir Lembro de nossos momentos de felicidade O melhor é partir Ver em teus olhos a luz se apagar A noite descer, o tempo fugir É querer assumir uma dor Que não quero sentir

É como se a canção dissesse: pra quê a melancolia de ficar revivendo na memória os momentos que foram só nossos, mas que agora, com consciência, sabemos que não poderemos repetir, seja por falta de empatia, ou pelo desligamento do encontro? É melhor que esses momentos nos acompanhem no álbum da vida. Que ao olharmos para suas páginas, em vez da recordação causar sempre aquele apelo saudosista e melancólico, que elas apenas contem a história de uma vida que continua sendo vivida. E que venham novos bons momentos. Eles são necessários, eles podem acontecer ainda, abrindo espaço para novas pessoas, novos amores, novos lugares, novas ocasiões, novos sentimentos.  Assim, “é querer assumir uma dor/que não quero sentir” soa mais como sabedoria do que como ingenuidade escapista. E a escolha do verbo “assumir” é representativo disso. Porque poderia ser “evitar”, mesmo que a rima sumisse em partes da estrofe, não causaria danos à melodia.

Lembro-me de outra canção, Quando bate uma saudade, também lançada no disco Eu canto samba, do começo de 1989, que é uma das pérolas desse disco de Paulinho da Viola. A letra dessa canção dá a receita do samba numa maravilhosa poética do óbvio ao dizer que sua inspiração pode vir daquele momento quando  “bate uma saudade/Triste, carregado de emoção/Ou aflito quando um beijo já não arde/No reverso inevitável da paixão/Quase sempre um coração amargurado/Pelo desprezo de alguém/É tocado pelas cordas de uma viola/É assim que um samba vem”. No disco, inclusive, essa é a faixa que sucede Estamos Noutra.

O fim do amor pode acontecer simplesmente, sem motivos. É inútil tentar achar um culpado, ou ficar rememorando e remoendo os momentos de copos quebrados. Assim como os cacos foram para o lixo, novos copos povoaram os armários e circularam pelas bocas dos amantes e das visitas, o amor que perdeu o fogo poderá/será também substituído. E aí me lembro ainda de outra canção, a clássica Pressentimento, do mesmo Elton Medeiros: “Ai! ardido peito/ quem irá entender o teu segredo?/ quem ira pousar em teu destino? […] vem meu novo amor/vou deixar a casa aberta[…] vem, que o sol raiou/os jardins estão florindo/ tudo faz pressentimento/que este é o tempo ansiado/de se ter felicidade”

E quando é tempo de se ter felicidade? Sempre não pode ser, se a felicidade está mais para um estado impermanente do espírito e do corpo do que um momento visado ao qual poderemos chegar e ficar. O que aprendo com estes mestres da elegância é que o único deus em que se poder crer é o tempo, senhor de tudo, que se encarrega de tomar conta do nosso bem mais precioso que é a vida. E como será a vida no turbilhão das novidades, do caminho a ser seguido só, na aventura dos dias? Apenas segue. Anda e desfruta do teu caminhar, que tudo há de ser como deve. Só não esquece de levar o samba junto.

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2017

No final de 2016, participei da equipe editorial da Revista Polivox para produzir sua terceira edição, lançada em janeiro de 2017, que traz na entrevista principal o músico paulista Rômulo Fróes.  O conteúdo da revista está disponível online no site http://revistapolivox.com/

No dia 22/01 assisti ao show da banda cearense Jonnata Doll e Os Garotos Solventes, com participação de Daniel Peixoto (ex Montage). Escrevi uma resenha sobre essa noite memorável, que foi publicada pelos meus parceiros do Oganpazan (Valeu, Danilo Cruz!). Segue link direto para o meu texto:  Quero comer Jonnata Doll e Os Garotos Solventes

Leiam, curtam e compartilhem. 

Deixo aqui as fotos do show do Jonnata Doll

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Eliane: a figura por trás das camisetadas no Rio de Janeiro

Se os mineiros são calmos e come-quieto e os cariocas debochados e festivos, a junção dessas duas características aliadas ao mundo político descrevem bem a psicanalista Eliane Martins, responsável pelas camisetadas que têm rolado em todas as manifestações políticas no Rio de Janeiro desde a última eleição presidencial em 2014, que elegeu Dilma Rousseff no segundo turno com 54,5 milhões de votos.

Se você frequenta os protestos não verde-amarelistas no Rio, é possível que você já a tenha visto. Com seu material, stencil e tinta de tecido, Eliane vai proporcionando uma verdadeira produção performática para os manifestantes. Você pode também já ter visto Dilma, Lula ou Mujica com uns bonequinhos deles mesmos: também foi obra de Eliane

Junto com Cecília Magalhães, também psicóloga e performer, fomos à casa de Eliane bater um papo e chegamos num verdadeiro universo paralelo, vermelho e cheio de arte, em pleno centro do Rio de Janeiro. A casa de Eliane mais parece uma instalação, decorada com os trabalhos que ela faz com papelão e com os próprios stencils. E ela nos recebeu vestida de protestos dos pés à cabeça.

A história de como tudo começou é a seguinte. Eliane contou que antes do segundo turno das eleições de 2014 estava no Facebook com uma amiga, desesperadas com medo de que Dilma perdesse. E então pensaram em fazer uma bicicletada juntando a mulherada. A bicicletada foi um fracasso, não foram mais do que 3 gatos pingados, mas ela tinha levado um stencil feito pela amiga, e que chamou atenção de novo de quem passava, mesmo a reunião da bicicletada tendo dado errado.

Foi aí que ela começou a pintar. Começou a ir para o Largo do Machado junto com as amigas  e lá se uniram ao Núcleo petista local. Começaram a pintar na rua, chamando a atenção de muita gente que passava para ver o que estava acontecendo:  “menina, assim, era uma fila de duas horas para pintar a Dilma. Eu ficava aos sábados lá, todo final de semana, direto, pintando o dia todo. Aí foi o maior sucesso e eu criei a camisetada. E depois que a Dilma ganhou eu continuei, porque aí veio “Constituinte já” [proposta por Dilma em 2013 pela reforma política], veio o “Golpe nunca mais” e agora o ”Fora Temer”. Agora está tendo a campanha da Jandira [Feghali], e estou pintando para ela”.

Eliane conta que quando começou o lance de pintar as camisetas, ela não vendia. Se as pessoas chegassem com a camiseta, ela pintava. O que ela fazia era deixar uma caixinha e quem pudesse contribuía para pagar a tinta. Só que depois um tempo, com o aumento da demanda por Dilmas, Lulas e Chicos, as pessoas chegavam despreparadas até ela. Foi então que ela começou a comprar camisetas lisas e levar, o que tornou toda atividade um pequeno comércio, pois nesse meio tempo ela comprou também uma máquina de corte: “é maravilhosa, estou fazendo os moldes das frases e funciona assim: você pensa, ela [a máquina] faz. Hoje eu fiz o Marx, de que a História se repete, a primeira vez como tragédia, depois como farsa”. E, claro, como não pode deixar de ser, Eliane levantou polêmica na cabeça do povo: para onde está indo o dinheiro das camisetas? Bem, se um dia eles renderem uma cobertura em ipanema, este será por direito e esforço dela, que soube agradar a vontade do povo.

Mas o stencil é só uma das formas de expressão e ativismo de Eliane. Sua casa é cheia de peças de arte produzidas por ela mesma. São instalações, em sua maioria de papelão reciclado, que ela utiliza para construir réplicas de casarões e prisões, por exemplo. Ela conta que aprendeu a fazer o trabalho com o artista carioca Sérgio Cezar, conhecido em toda América por seu trabalho de miniaturas de barracos, casas, favelas (como na cenografia da abertura da novela Duas Caras da Globo), etc.

Eliane monta ambientes que muitas vezes lembram cidades do interior e casas antigas de fazenda. E pensar nas suas origens ajuda, Eliane guarda um sotaque mineiro misturado a certa entonação carioca e tem ótimas histórias de suas tias longeva em Minas Gerais, que não dispensam um passeio pelo Rio. Ela conta que uma das melhores cidades do mundo é Durandé – região da zona da mata mineira, com pouco mais de 7 mil habitantes: “Durandé é um cu de mundo maravilhoso. Sabe aquele cu de mundo maravilhoso? É uma roça. Quando tem festa de rodeio, essas coisas, é como se você estivesse na lapa, porque é um lugar muito moderno, criado por franceses. Lá, quando tem festa, eles colocam um palanque, a rua fica cheia, cheia, igual à lapa mesmo, com barraquinhas, e o pessoal fica bebendo. As casas têm as portas todas na beira da rua, aí você quer ir no banheiro e fala ‘ô dona cumadi, dá licença”. As casas ficam abertas e todo mundo se conhece, entram e saem da sua casa. E lá tem muito mato, é lindo. Mas a família da minha mãe vem de outra cidade, eu vivi em Chalé.

Além das casas de papelão, Eliane também monta outros ambientes mais complexos, que quase sempre se referem à ditadura militar, às torturas sofridas por militantes e por Dilma Rousseff em especial. Duas dessas peças que estão em sua casa representam estes momentos políticos. Um é uma gaiola, ainda incompleta, cuja prisão é montada dentro dela, com muitos símbolos, signos, miniaturas e uma foto de Dilma adolescente. Especialmente iluminada com uma lâmpada amarela por dentro, como uma cela mesmo. A outra peça que chama atenção também é uma prisão, porém de papelão. Na porta tem um boneco pendurado num pau de arara e um símbolo da república brasileira pregado. Dentro, de um lado uma cela e uma cama, com uma foto de Che Guevara; do outro, uma outra foto de Dilma Rousseff. Com pequenos objetos, encontramos lá dentro cordas, óculos, uma pia, livro, etc. É um trabalho artístico engenhoso e muito bem feito.

A casa de Eliane é toda cheia de significações, assim como os parangolés políticos que ela desenrola para sua performance pessoal. E como psicanalista freudiana que é, ao ver todo esse conjunto a imaginação fica aberta para tentar entender a complexidade da interessante figura que Eliane é e que se nos apresenta.

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“Música é confronto: Dror Feiler no II FIME” - Texto para O Cafezinho

Na última semana, publiquei um novo texto sobre Dror Feiler e o II Festival Internacional de Música Experimental, que aconteceu aqui em São Paulo entre 16 e 30 de julho, num dos sites que sou mais fã: O Cafezinho. 

A publicação surgiu de um convite do colunista Bernardo Oliveira, a quem agradeço muitíssimo. Segue o link para leitura: http://www.ocafezinho.com/2016/08/08/musica-e-confronto-dror-feiler-no-ii-fime/

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Vivão

O Poro Aberto não morreu. Tenho contribuído sobretudo com meus parceiros do Oganpazan

Segue alguns links dos textos que têm rolado por aí:

4. Transcrição de um papo entre Bernardo Oliveira e Arto Lindsay: “Não tem arrego: correndo perigo com Arto Lindsay”

As fotos de shows também têm rolado, ainda que o ritmo tenha sido mais lento nos últimos meses. Mas elas dão um pouco da direção sobre os shows que tenho ido. Só ir lá no Flickr pra ver: /perolamathias

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Sobre o(s) Absurdo(s)

Sambas, compositores, artistas e as mazelas do Brasil contemporâneo

Escrevi este texto há 1 mês e meio atrás. Algumas das notícias conjunturais do Brasil mudaram extremamente rápido, de forma que nem tudo está atualizado aí. Mas optei por não modificar certas informações, pensando que elas são retratos seguidos do trevoso momento político que vivemos.

Num período em que morava em Salvador, eu vivia uma vida boa e um tanto estressante por ter um carro e depender bastante dele no dia a dia. Nele eu carregava uma pasta de cds variados que um amigo me deu quando se hospedou lá em casa pro inesquecível carnaval da volta dos Novos Baianos (ainda que incompletos) na avenida (barra-ondina e campo grande). Mas nem sempre eu estava afim dos discos e escutava muito, mas muito mesmo a Educadora FM, porque além de tocar músicas que eu gostava, tocava músicos baianos contemporâneos no programa Radioca, tinha o programa de hip hop local, o das novidades africanas com Sankofa e especiais sobre a história da música com Perfilino Neto. E eu gostava sobretudo porque toda sexta-feira, às 18h, quando eu invariavelmente estava no trânsito do rio vermelho vendo o sol se pôr no retrovisor, tocava o Hino ao Senhor do Bonfim, ao invés da Ave Maria. Era lindo demais.

Nessa mesma época me chamou atenção uma campanha da rádio de valorização dos compositores. Depois da execução das canções nos programas ao longo do dia, eles sempre informavam ao ouvinte o nome dos compositores. Era interessantíssimo.

Os compositores, seus nomes e suas figuras me chamam muita atenção, porque eles nem sempre são os músicos e executores da canção ao qual deram a letra. Quando comecei este Tumblr, destaquei como Gui Amabis e suas letras me hipnotizavam pelas narrativas e temáticas que deslocavam o lugar comum cancioneiro. Hoje, quero voltar a falar dos compositores, destacando desta vez Nuno Ramos – ainda que muitos nomes me chamem também atenção, como Luciano Salvador Bahia, Marcos Sacramento, Luis Capucho, César Lacerda, etc, etc etc.

O nome de Nuno Ramos tem aparecido nas canções apresentadas pela maioria dos músicos que ouço com bastante frequência: Rômulo Froes, Rodrigo Campos, Mariana Aydar, Nina Becker... Mas Nuno não é um compositor imerso exclusivamente no meio musical. Formado em filosofia pela USP, foi através das artes plásticas que escutei seu nome pela primeira vez. E, depois, ele foi se configurando, na minha concepção, tal como o artista contemporâneo delineado na sociologia pragmática de Nathalie Heinich:  aquele cuja obra ultrapassa os limites do senso comum tanto como objeto de arte, como da arte em si, que possui um discurso escrito fortíssimo sobre sua obra, com mediadores igualmente capacitados a falar sobre ela e localiza-la em seu tempo e contexto.

A visão de Heinich se expande, se complexifica e se aproxima do que pretendo falar aqui, de alguma forma, com o livro (que já citei aqui no Poro Aberto no texto sobre Iago Mati) “Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea”, de Florencia Garramuño, que se inspira justamente na obra “Frutos estranhos” de Nuno Ramos, apresentada em 2010 no MAM –RJ. Para Garramuño, o desbordamento estético de Frutos Estranhos a torna um exemplo perfeito de como, na contemporaneidade, o diálogo entre diferentes linguagens e estilos está presente de forma fundadora e, ao mesmo tempo, fluida numa apresentação artística. Na literatura, por exemplo, é possível questionar ou não ver mais clareza entre a identificação de gêneros literários e o que vem sendo produzido, que não só mescla meios e linguagens, mas tem refeito o formato “literatura”, trazendo fragmentos heterogêneos de narrativas múltiplas.

Garramuño coloca que a inespecificidade estética do fragmento de objeto, ou o que sobra dele na obra de arte, pode ser vista como uma prática de não pertencimento, de rompimento daquelas mesmas fronteiras em que circula o artista, seu pensamento crítico e a realização deste. Questionar a especificidade de um meio, o que se dá não apenas no entrecruzamento entre diferentes linguagens e suportes, mas também no interior destes mesmos meios, é criar – ou enxergar - um horizonte infindo de possibilidades, criação e interpretação.

Ontem assisiti na Casa de Francisca, apresentado pela primeira vez,  o show “Sambas do absurdo”, que reuniu Rodrigo Campos, Juçara Marçal, Gui Amabis e Nuno Ramos (este não no palco, mas como autor de todas as letras cantadas). Segundo contou Rodrigo Campos durante o show, a ideia dos Sambas do Absurdo nasceu a partir da leitura do Mito de Sísifo, de Albert Camus, que o impressionou muito com a ideia de que a ação de Sísifo revela o sentido (ou a falta dele) no esforço em se viver. Daí decorre a tragicidade da vida. Pelo que apreendi, as letras corriam como flui o pensamento, como se se cantasse aquilo que se vê-pensa-reflete, tudo junto, quando se anda na rua, por exemplo. Mas essa é só uma impressão, porque não sou capaz de me lembrar sequer uma frase das canções que escutei ontem senão intuitivamente. E muito menos disponho delas aqui para reouvir e analisar. Mas como em muitas das letras de Nuno Ramos que conheço, elas funcionaram ali em melodias de samba.

Num texto escrito para a Folha de São Paulo em maio de 2014 (há dois anos, portanto) que intitulou “Suspeito que estamos...”, Ramos denunciou e refletiu, se colocando numa posição de não especialista, sobre mazelas que nos rondam, nos diminui e nos degrada enquanto sociedade. Ele cita a violência urbana, o caos administrativo e o desprezo pelo bem público, o cinismo midiático, as desigualdades sociais que vemos sendo cada dia mais aprofundadas e a dívida que temos com aqueles que sofrem cada uma destas ações -  como a parte mais frágil da corda que tenta-se puxar para o seu lado num cabo de guerra que sequer deveria ter sido iniciado: epítome do absurdo. Ao longo de uma lista de suspeitas que vão de pequenas e individuais mazelas a problemas macro estruturais, Ramos suspeita que “estamos fodidos”.

Uma vez, conversando com Paulo da Costa, que escreve textos que tanto me influenciam, ele me disse que Nuno Ramos era uma das pessoas cuja leitura mais o inspiravam – junto com Lorenzo Mammì, Antônio Risério, Walter Garcia e outros. Em um outro texto de Ramos, em que ele descreve sobre a experiência de apresentação da obra “Iluminai os terreiros” em Salvador (a mesma, porém outra Salvador que citei no início deste texto) e em Frankfurt, em 2015, fica mais uma vez claro como ele rejeita a romantização do caos e a glamurização do que há de pior nos escombros – físicos e humanos – que resultam da torta lógica capitalista que nos torna uma sociedade ainda mais massacrada e perversa do que já éramos ou somos.  No entanto, parece que é desse ceticismo realista que surge as suas mais belas composições artísticas, que destampam o fundo do poço e nos faz encarar a escuridão até ver o que tem dentro dela. Paulo da Costa escreveu, inspirado neste texto citado de Ramos, outro texto que chamou de “O desaparecimento do Brasil”. Nele, argumenta que não podemos perder a tradicional esperança antropológica no Brasil, cunhada do modernismo ao Tropicalismo. E diz que, aqui, a música popular é o nosso “grande reservatório mito-Brasil”, a “única força capaz de nos fazer recobrar as esperanças” e crer, como no Nietzsche que o próprio Paulo cita, que queremos ver no mito a própria ideia de comunidade. Ou seja, é uma outra forma de olhar que a de Ramos, mesmo que elas se inspirem num mesmo eixo.

Muitas das obras, canções e textos de Ramos desvelam camadas de desilusão. Parece condizer, então, vir dele sambas cantados sobre “o absurdo”. 

É interessante que, como artista, mas também como filósofo de formação, Nuno Ramos seja essa figura “completa” de intelectual: que pensa, que cria e que propõe diálogos abertos – tanto entre outros intelectuais interessados em pensar o Brasil, quanto entre artistas dispostos a pensar a forma e o conteúdo estéticos, como com o público que passa para ver suas obras.

Agora, alguns dias após o show, estou saindo para a Funarte-SP para ver o mesmos Gui Amabis, Romulo Froes, Catatau, Rodrigo Campos e outros cantando e ocupando o órgão do tão novo e (provisioriamente, quero eu acreditar) já extinto Ministério da Cultura. Creio que, nesse panorama desesperançoso, é preciso além de tudo presença. Por isso acredito ser importante ir apoiar uma ocupação mais do que legítima. Estando dentro de uma sociedade tão conturbada, eu não poderia mais do que defender aqueles que nos proporcionam, minimamente, modos de olhar para dentro de nós mesmo enquanto grupo nesse turbilhão. Se neste momento peremptório e temeroso, em que queremos crer num futuro em que veremos a construção de novos belos edifícios e uma responsável reconstrução de nossas ruínas, estes artistas são muito mais do que as vigas do nosso edifício em construção: são pedreiros e são pilares; são o prédio pronto e seus habitantes; são os belos croquis habitáveis de Lina Bo Bardi; são a superação da escrota relação entre o governo e a especulação imobiliária*; etc, etc etc.

 * No texto citado de Ramos, publicado na Folha de São Paulo em maio de 2014, antes das eleições presidenciais, portanto, ele escreve algo muito condizente com nosso atual Temer (bad) Times, que reproduzo: “Quarteirões tombados tombando, de um lado; prédios totalmente desconectados da cidade (além de feios), sem cota nem propósito urbano, de outro. Suspeito que entre o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a especulação imobiliária uma curiosa aliança esteja aos poucos se fazendo –ruínas orgulhosas copulando com despautérios azulejados de 30 andares.”. O Minc, ao menos no papel, voltou. O que será do Iphan ninguém sabe. Se o Golpe perdurará? Espero que o derrubemos.

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BABIES

o novo disco de Bruno Cosentino

Bruno Cosentino acabou de lançar um disco apaixonante. Forte e cheio de brilho. E eu tive o prazer de escrever um texto sobre o disco, disponível no site e que coloco também abaixo: 

Bruno Cosentino dá as caras. Se em Amarelo o torso nu (que anunciava seu primeiro disco solo) preconizava a contraditoriedade do desprendimento do corpo descoberto e, ao mesmo tempo, sua forma escultural misteriosa e científica, refletida sem a cabeça, já na capa de Babies somos tragados pela vida borrada do batom vermelho que nos chama nas pontas dos dedos entrelaçados de Bruno, entrando tortuosos em sua boca, e na camisa semiaberta de quem amanheceu desperto de uma noite agitada.

Babies pode ser uma balada pop romântica, mas sem as obviedades que este último termo suscita. Ouvi(ve)mos nele a vida desvelada na pista de dança em clima setentista, experienciando o canto de uma poesia de fôlego deslocado.

Babies traz ideia, conceito e personalidade. E quando nos balançamos com peixes nadando em nossas bocas, dançamos não sem um quê de melancolia. Afinal, o que nos leva a rasgar uma pista de dança de forma emocionada?

Em Amor, feche olhos e pense com alegria no incômodo mais cotidiano da vida a dois: os cabelos que misteriosamente vão se pregando nos azulejos do box do banheiro. Pois na letra de Pedrinhu Junqueira e Julia Shimura, o som do exército de bebês somado ao canto e vocalizações a la Gil que Bruno muito gostosamente faz, o corriqueiro não racionalizado vem à tona - e é impossível não dar um sorriso canto de boca dizendo para dentro: “é mesmo!”.

Com Babies, dançamos de olhos fechados sem nunca perder o balanço da proposta, pois o disco tem essa sonoridade redonda, uníssona, em que o tema, assim como em Amarelo, ainda que com letras supostamente mais simples (é o que diz o próprio Bruno), tratam do que temos de mais complexo: a própria vida, em que seguimos incessantemente buscando entender nossa existência.

Para mim, é isso Homens flores, composição de Luís Capucho e Marcos Sacramento. A beleza humana de poder olhar uma direção, rumar a ela com a esperança e a força para promover o renascimento da poesia. Uma poesia viva, que cresce e se multiplica com o cultivo de homens fortes/homens flores/flores homens.

E Babies traz também dias de sol. The Big Blue é o grande segredo por detrás de um dia brilhante na praia. Enquanto da areia se olha o mar infinito, um corte na luz mostrará que naquele cenário uma veia aberta se esconde:  nascemos nus e seguimos sós. As letras de Bruno Cosentino trazem essa marca, elas retratam encontros, instintos e pulsões. O que poderia cair melhor na canção brasileira contemporânea? A resposta é Babies: nossas crises vestidas para dançar e brilhar – muito! Seguimos na urgência ansiosa de pensar no amanhã cedo, como se já fosse setembro – o mês que sucede o agourado agosto rumo ao novo, ao próximo ano, mais um, em que talvez saberemos mais, amaremos melhor e conviveremos mais pacificamente com os nossos amores.

Me embaralhe ria dance na beira da cama dance. Babies lembra e prenuncia, nos suspende no tempo, para que saiamos dançando/transando todas até de manhã, emendando mais uma para que o agudo do wurlitzer não acabe nunca mais.

O disco está para download no site: 

E também no Spotfy e no Itunes. Só dar o play!

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Bruno Capinan: o pássaro

Há quase quatro anos, no dia 12 de junho de 2012, conheci o cantor, compositor, performer e buona gente Bruno Capinan numa noite semi fria de Botafogo. Além de dia dos namorados (em que eu levei um homérico pé na bunda que não me deixou esquecer a data), era lançamento do álbum Pitanga, de Mallu Magalhães, no teatro do Solar de Botafogo (Rio de Janeiro). Mallu estava linda e fez um show igualmente lindo. Depois de sua apresentação foi que conheci Bruno, por intermédio do músico e produtor Luisão Pereira. Saímos para um breve chopp na Cobal e, com tanta coisa boa superando um único (e hoje insignificante) percalço no caminho, ficou a lembrança de uma noite radiante.

Além do astral, me chamou atenção naquela noite que Bruno, entre um grupo de falsos e autênticos baianos, era um verdadeiro baiano, levemente com sotaque, que morava (e ainda mora) em Toronto, no Canadá, e se dizia apaixonado pelo Rio de Janeiro. Sua trajetória por si só me deixou intrigada. Ele me deu seu disco “Gozo” e pensei, antes de chegar em casa, que ali eu poderia ter mais pistas sobre a multi-identidade daquela pessoa formada com uma origem plural e com influências e andanças difusas.

Em 2014 Bruno lançou outro disco: “Tudo está dito”. Este é, com certeza, mais alegre e colorido, tanto na capa, um desenho do próprio feito por Mallu Magalhães; quanto na tonalidade e letras de suas canções. Ele apresentou o disco algumas vezes no Brasil e não pude assistir a nenhum desses shows. Na verdade, nunca mais havia visto Bruno.

Em outubro do ano passado, 2015, Bruno estava no Rio e fez um novo show, no projeto da Nuit Nomade, no Cine Joia. No coração de Copacabana, um dos cinemas mais aconchegantes da cidade se tornou o palco de Bruno Capinan naquele dia, num clima descontraído e intimista. Bruno se apresentou frente às projeções ao vivo da artista Nathalie Melot, acompanhado por Domenico Lancellotti na bateria, Bruno di Lullo no baixo e Bem Gil na guitarra – tendo ainda participação especial de Ana Lomelino.

Tive o privilégio ou a sorte de ir ver Bruno  com a câmera em punho neste dia. E apesar da esparsa iluminação, que atrapalhou a minha pouca ou nenhuma técnica fotográfica, tentei ao máximo captar o brilho desse ser de luz. Bruno fez um show divertido, espirituoso e, sobretudo, muito talentoso. Em cada música era possível se encantar com seu ritmo, sua dança, seu figurino esplêndido, sua performance, seu jeito de cantar e suas histórias - espero mesmo que vocês vejam um show dele e escutem como nasceu Gang Bang Mangueira e como ele conta que Domenico reagiu querendo saber o significava “Gang Bang” (com o próprio Domenico rindo à beça atrás da bateria).

Bruno é aquele musico que você pode ir a um, dois, três, mil shows se tiver oportunidade e deixar seus discos rodando no sábado ensolarado. Ele é aquele cara alto astral que dá vontade de convidar pra uma cerveja no fim de tarde, se juntar para ver o pôr do sol na praia ou caminhar no calçadão de Copacabana (como nos desenhos de Mallu que ilustram o encarte de “Tudo está dito”).

Segue aqui um bate-papo meu com Bruno Capinan                                           

PA: O que é fazer arte para você?

BC: Fazer arte é o meu oficio. Mas além de oficio, penso arte como política. Luta contra fluxos de normalidade e controle, esse controle territorial, sexual, educacional, econômico, estético. A arte está no centro de pensamentos filosóficos que não cabem somente na arte por si só, ela depende da percepção do outro para existir, mas independe dessa percepção para ser criada. O que resulta em algo distinto da arquitetura, por exemplo. Fazer arte é contrariar a si mesmo e a muitos. Não faria arte para sobreviver financeiramente por exemplo, mas somente por esses motivos que citei.    

PA: Como você sente a música?

BC: Com o corpo, todo! Rs. É muito orgânico. Tudo é música pra mim. Outro dia eu estava num táxi no Rio e comecei a batucar e a cantarolar, é muito natural isso, e o taxista perguntou se eu era compositor.  

PA: É possível comparar o cenário artístico musical que você circula no Brasil com o do Canadá? Como você vê ambos? (com relação à produção, criação, recepção... enfim, o que lhe vier à cabeça)

BC: Sim, são mercados bem diferentes. Aqui no Canadá a indústria se espelha nos Estados Unidos, embora com números menores por conta da população ser menor também. Na parte francesa de Quebec, principalmente em Montreal, a indústria da música tem uma força mercadológica maior comparada as outras províncias, creio que por conta da arte ser vista como fator relevante no desenvolvimento socioeconômico, e por conta da luta pela resistência da língua francesa. Minha música tem sido bem recebida, e tenho tido o apoio municipal, estadual e federal para botar o bloco na rua. Porém, a criação fica muito no existencialismo, tudo muito ideológico. Mas a minha visão não se limita a patriotismo ou nenhuma sensação de melhor ou pior lugar pra se viver. E mesmo cantando em Português, essencial para manter o contato com a língua materna, a recepção tenho sido surpreendente. Penso em gravar um disco todo em Inglês, mas muito mais para o público Brasileiro do que pro Canadense.          

PA: Se fosse pra você fechar os olhos, pensar no verão e escolher um astral: Bahia ou Rio de Janeiro? Como foi a experiência deste ano no 2 de fevereiro?

BC: Verão é na Bahia, é menos calor e todo mundo fica amoroso. No Rio é só sexo no verão, e no outono, inverno e primavera. Na Bahia ainda rola uma connection. Eu sempre componho mais na Bahia, recebo mais carinho e a pegada baiana é mais amorosa.

O verão e o 2 de Fevereiro deste ano foi incrível, como todo ano. É uma energia única na Bahia. Muito amor, muito riso, muita gente. Esse ano foi especial por estar próximo de amigos e artistas que amo muito, como Ana Claudia, Bem Gil, Caetano, Ava, Negro Leo, Anelis, Marcinha Castro, Zé Manoel, Moreno, Vitor Hugo, Ricardinho, e tantas outras almas alucinadas naquele lugar, naquele momento das nossas vidas, naquele fluxo de energia.

PA: Gostaria de dizer algo para os nossos ~leitores~?

BC: Sim! Esse ano vai rolar disco novo e participações em discos de amigos também. E outras surpresas que não revelo nem sob tortura ou suborno.  

 Quem me apresentou Bruno Capinan, como disse, foi Luisão Pereira. Luís é um baiano de Juazeiro, terra de João Gilberto e Ederaldo Gentil (por acaso, seu tio), e foi guitarrista da banda Penélope entre os anos de 1990 e 2000. Atualmente ele toca com Fernanda Monteiro a banda Dois em Um. Luís produziu inúmeros trabalhos entre discos, shows e trilhas (que não caberia citar aqui nesse post, mas mereceria um outro exclusivo). Dentre esses está o “Tudo está dito”, em que compôs junto com Bruno a faixa “Ave Mãe”. O Dois em Um participa também da última faixa, “Os pássaros não são nada fiéis”, com Fernanda Monteiro nos cellos e Luisão na programação. Recentemente, Bruno e Luís tiveram sua parceria na canção “Promessa” gravada por Janaína Fellini. Sobre a amizade e o trabalho com Bruno, Luisão Pereira diz:

Bruno, o pássaro.

Aparentemente tímido, Bruno pousou em minha casa em 2011, trazia no bico um convite para eu dirigir e tocar no show do seu primeiro disco, 'Cio' (2010). Observando as canções dele percebi ali uma ave rara de canto único. E logo veio a nossa primeira parceria: "Ave maē". A partir daí, consequentemente, começaram a surgir ideias pro segundo disco. Tudo foi conspirando a favor e, em 2014, chamei Domenico Lancellotti e Bruno di Lullo - que estavam vindo para Salvador tocar com Gal - e consegui juntá-los a Junix, montando assim um time dos sonhos para a gravação: toda a base foi registrada em apenas dois dias. Depois disto ficamos mais algum tempo na gravação de instrumentos adicionais, vozes e finalmente em 2015 o "Tudo está dito" nasceu.

Com este disco, o tímido pássaro abriu as asas e mostrou-se um poderoso pavão que voa ávido em direção à luz.

Fotos: Pérola Mathias

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Oganpazan e Poro Aberto

Depois de colaborar com o Questões Musicais, tive também a honra de ver o texto que escrevi sobre Jards Macalé aqui no Poro Aberto ser publicado no site dos meus conterrâneos baianos: o  Oganpazan. Para quem ainda não leu o texo, agora também pode ler AQUI.

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Para o próximo ano, planejo escrever aqui um pouco mais detalhadamente sobre o Oganpazan: como o site se organiza, quem são seus realizadores e porque acho seu conteúdo tão interessante - sou uma “oganauta”, como eles nomearam seus leitores. 

E aproveitando que hoje é 25 de dezembro, além de ser natal, já estamos quase lá em 2016 (não é incrível como os anos parecem passar cada vez mais rápido? Pelo menos tenho sentido assim): Boas festas a todos! 

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