Nina Simone (1933-2003) posed in London in June 1968.
photo: David Redfern/Redferns
ponteiro
abrir o olho é um tormento mascarado de alívio. porque o despertar que procuro ainda dorme, silencioso, silenciado, dentro de mim. aquele despertar que acontece no escuro, entre a lambida e o sebo. ou no claro, entre a carícia e o abraço.
quero despertar a sinceridade que resiste ao parto das palavras. quero despertar a ânsia do que não sei que vai acontecer. despertar o sono nos meus medos. a adrenalina nos meus vícios inofensivos. e o pavor na dúvida que me impede de agir.
but I knew how to dress it up
odisseia
eu já pensei ser grande demais para viver sem afeto, sem afago, sem apego. hoje vejo o quanto isso me fez pequeno. nunca me vi como alguém amável, desejável, palatável. afinal, se do lado de fora ninguém olhava para mim, meus olhos de dentro não tinham por que ter algum interesse. eu nunca beijei minha testa numa despedida. nem quando dei adeus aos meus 13 anos. nem quando disse até logo à serenidade de nunca ter pecado. nem quando vi, ao longe, os pedaços de família que eu tinha correndo e se distanciando no horizonte. eu nunca me convidei para uma dança. nem quando um novo começo fazia minha vida ranger em meio ao movimento.
era duro ser eu. as pessoas do meu lado se lambiam, trocavam salivas, risadas, carícias, contatos. e eu sempre fui um satélite em órbita, projetando uma sombra no rosto delas de vez em quando; sempre que eu falava, sempre que eu aparecia. uma sombra incômoda. eu nunca vi o amor como algo válido para mim. no fim, era como se eu fosse uma caixinha de pertences com fundo infinito. tudo cabia, mas nada ficava. eu fazia o dever, apresentava o trabalho, sorria com o mérito, e isso me bastava.
amor mesmo só na plateia. no meu palco, não. as cortinas fechavam à noite e abriam de dia, e eu estava lá, no meu show itinerário que se repetia há quase duas décadas. as pessoas me davam um livro, mas eu queria mesmo era as pessoas. eu queria o toque, o lambuzar da língua, o chamuscar do sexo, o alívio do orgasmo. vai ver o problema foi eu ter me robotizado: um humanoide que operava em condições subumanas. dava bom dia com um aperto de mãos, mas isso só servia pra conter o aperto no peito. um cumprimento aqui, um oi dali: pronto. ele serve para conviver em sociedade. só não serve pra ser vivido.
eu andava pelos corredores procurando, examinando, decodificando. se me atraía por alguém, o impulso elétrico me guiava, mas a carga era fraca demais. na época eu estava sedado em um estado puro de apatia. morando nas salas de aula, no sofá de casa, na ideia que tinham de mim.
hoje, aos 24, eu tento reprogramar a versão que me sobrou ser. me atraindo por todo olhar que vejo por aí. me enganando pelos sorrisos que quase nunca são pra mim. eu fui embora, meu pai ficou. eu vim, mas quero voltar.
para boiar na água, inflar o peito
para boiar sobre os dias, prender o fôlego
— Tarso de Melo, no livro "O nervo do poema". (Ed. Relicário; 1.ª edição [2018]).
Duncan Grant (1885-1978): Wrestlers (pastel chalk)
desesperado para viver o amor e igualmente apavorado por isso
my best quality is that i torture myself and not others
vida sem rima
as palavras não sabem mais me ler
caminho sem volta
o portão da minha casa nunca fechou totalmente.
mesmo com mais óleo e uma mão habilidosa vez ou outra, uma fresta continuava solene e impune, permitindo que mais luz se concentrasse do lado de dentro.
neste, as noites eram feitas de pernas entrelaçadas no sofá, mentes que nunca se encontravam e um piso frio que não sentia mais o nosso calor.
aos poucos, então, o ensolarado do sertão foi dando vez a uma tempestividade ruidosa e úmida, que provocava trovões em cômodos fechados e alagamentos em pálpebras já ressecadas.
nos tornamos pessoas que respingavam chuva umas nas outras, culpando-nos entre si, mas sempre com as mãos escondidas quando as acusações eram lançadas para o alto.
o cinza que deu tom à nossa rotina nos impedia de enxergar a bondade dos recomeços. os sorrisos agora temiam adentrar na neblina dos nossos rostos.
existe um momento crítico quando afogar e respirar parecem uma só opção, a mais sensata delas. e foi isso que fizemos. em um mergulho unânime, as faces que tanto se pareciam agora eram irreconhecíveis embaixo d’água.
mas foi aí que lembramos: existia sempre uma fresta no portão. e naquele momento, só nos restou transformá-la em caminho.
decisão tomada: para sempre seguirei sozinho
mendigo
com a faca e o queijo em mãos
mas ainda aguardo o distribuir das migalhas
o tudo é inalcançável quando você insiste em se apaixonar pelo nada
Natalie Díaz, from "American Arithmetic", Postcolonial Love Poem
o encanto se foi
as palavras desinflaram e caíram ao chão, sem voo
ainda assim, minha vigília continua
estou de joelhos, recitando a sensação em voz alta, com medo da memória, temendo o esquecimento